segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O peso das palavras

Antonio Luceni

Se soubéssemos o peso que as palavras têm, não as usaríamos de qualquer modo. Não sairíamos como metralhadora, disparando por aí toda e qualquer palavra.

Gosto de conversar com as pessoas e prestar atenção no que estão dizendo, ouvir suas queixas e vivências, absorver experiências sobre coisas que necessariamente não terei que passar para ver como são, para “tirar a prova dos nove”. Talvez por isso goste tanto de biografias. Leio várias delas. De artistas, de escritores, de pessoas simples do povo... Os documentários sobre pessoas e vidas das mais diversas são um grande aprendizado para mim.

É interessante como, nos relatos dessas vidas todas, as palavras marcam os vários momentos: “Você é importante para mim”; “Seu trabalho me anima e me faz continuar viva”; “Você consegue, sim; nunca deixe que ninguém diga o contrário”; “Seu desgraçado... tomara que você morra”; “Você não presta; nunca vai ser alguém na vida”... Quantas palavras serviram como barreira ou trampolim para vida de tanta gente.

Fico pensando em quanta bobagem já disse pela minha vida que não contribuiu em nada para edificação da vida das pessoas, para que elas se animassem a fazer algo de bom para seus semelhantes e contribuir para com seu entorno. Quantas palavras atravessadas numa conversa ou discussão feriram meus pais, meus irmãos, amigos ou colegas de trabalho.

Mas também – tenho consciência disso – disse e escrevi coisas que ajudaram pessoas do meu convívio, que motivaram um novo projeto, que encaminharam a vida para um rumo melhor, de alegria, de conhecimento, da arte...

Estou cada dia mais preocupado com aquilo que digo ou deixo no papel. Estou cada vez mais arrelio a escrever “qualquer coisa”, botar qualquer palavra para circular por aí, seja em que formato for... Estou preocupado em, de repente, atrair alguém para meus textos e, no final, esse alguém se decepcionar, achar uma babaquice tudo que leu e me amaldiçoar para o resto da vida. (Vá lá saber se a maldição dele pega e acabo definhando no ofício de escrever).

É verdade: a palavra muda a vida da gente.

Quantas vezes saímos de um texto e choramos? Quantas vezes saímos de um texto e queremos abraçar alguém, dizer que é importante pra gente, que é gostoso estar ao seu lado ou coisa assim? Quantas vezes saímos de um texto e ficamos com medo de cometer pecado, de querer chegar a ser deus, a sair correndo, fugindo para outro canto do mundo ou universo? Quantas vezes saímos de um texto e ficamos com palavras no colo, acariciando-as feito amante em dia de chuva e noite gostosa?

Não quero mais usar a palavra-vã, a palavra ainda crua, bruta, sem nenhuma reflexão que seja, mínima que seja... Mas não a quero enfeitada, também. A palavra cheia de maquiagem, dissimulada, travestida... Quero a palavra-palavra, verdadeira, pura, limpa, honesta, direta, simples... Quero a palavra que, por mais estranha e seca que seja, sirva para alguma coisa, mas alguma coisa bacana, que valha a pena para quem ouve.

Não quero usar palavras de bajulação, não. Por mais que às vezes elas fiquem implorando para sair, mas não as quero saindo de minha boca. Quero os elogios verdadeiros e que, mesmo as críticas, sejam humanas, no intuito de contribuir, não de machucar.

Quero a palavra-que-presta, que transforma, que modifica o olhar sobre as coisas. Quero a palavra-muda, a palavra-transparente, a que alguns conhecem como “silêncio”. Mas não o silêncio da alienação, do devaneio... Quero o silêncio-palavra, ou melhor, a palavra-silêncio, a que diz mesmo sem dizer. Mas diz.

Antonio Luceni é mestre em Letras e escritor, membro e diretor da União Brasileira de Escritores – UBE.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

VENDE-SE UMA CASA

Antonio Luceni

Vende-se uma casa, toda mobiliada, com cheiro de carinho dentro.
Ela saiu correndo, nem deu tempo de desligar o gás. Antes dela, uns caras ociosos, de má índole e com um odor de suor intenso – talvez mais por conta do nervosismo que das notas de feromônios exaladas por eles. Ainda assim, fediam feito cachorro solto em dia de chuva. E aquele cheiro contrastava com o da casa que abrigava calor e carinho. Não sei se estava lá dentro quando invadiram a residência. Ela não me disse e também não quis saber, porque aí já era invadir ainda mais sua privacidade que, a essa altura, estava escancarada: com os marginais que a invadiram, com os policiais cheios de perguntas e dúvidas, num tom mecânico e quase a dizer “é assim mesmo” ou “mais uma infeliz assaltada”.
Vende-se uma casa, com cheiro de carinho dentro.
Levaram tudo o que puderam. A geladeira ficou, a cama ficou, a sombra de uma ou outra mobília ficou. Mas só, porque no demais, tudo levaram. Aquele porta-retrato com uma fotografia da família na praia, levaram também. O anel de brilhante que a vovó a deu pouco antes de seguir caminho, também levaram. Umas roupas de seda, um cachecol de tricô – o primeiro que ela teve coragem de bordar e que ficou meses parado esperando ser finalizado também levaram embora. Ainda bem que levaram embora aquela blusinha listrada, meio godê... já não a suportava mais. Por que não levaram embora as contas também? Sobre o criado do quarto havia muitas duplicatas, muitos boletos bancários para pagar. Poderiam ao menos ter sido gentis e usado parte do furto para quitar suas dívidas.
Vende-se uma casa.
Não quero mais ficar aqui. Tirem-me daqui. Façam o que quiser com a casa, mas não me deixem nem um minuto sozinha com ela. Esse cheio, esse silêncio, esse lugar... Quem disse que eu quero ficar aqui. Tirem-me daqui. Tirem-me daqui e lancem a chave fora. Ou melhor, deixem-na sob o tapete, atrás de um vaso qualquer... Talvez aquele ali, o da violeta. Adoro violeta... como elas são lindas... como eu gostava delas... Como era agradável acordar bem cedinho, junto com os pássaros e, envolvida pela sinfonia matinal, jogar água nelas, umedecer os seus caules com delicadeza, evitando água em suas folhas para não apodrecerem. Também gostava de ir para o fundo de casa e continuar a rega sobre as samambaias, os coqueiros minúsculos que enchiam um vaso de cimento, formando uma touceira verde que se matizava ao longo do dia, conforme os raios de sol a invadiam.
Alguém quer essa casa?
Uma casa das minhas alegrias: das festas dos batizados das crianças, dos churrascos dos finais de semana, das ceias fartas de natal e páscoa, das risadas da maior parte da minha vida, dos meus cansaços, dos meus segredos, das minhas lágrimas em secreto... Deixo tudo isso para quem quiser esta casa. Porque agora... agora não tem mais graça. Está que é este fedor horrível, desses malditos que aqui entraram. Desses homens cruéis que não querem nem saber se a gente tem filho, se a gente tem história, se aqui já residia outro cheiro, outras vozes, outras sombras...
Não quero mais essa casa.
Essa casa que um dia foi minha. Que um dia foi minha alegria. Que um dia me fez acreditar que ficaria nela até minha velhice. Que sobre minha cama ficaria dormindo, cansada, com as forças findas, esperando uma xícara de chá e um analgésico ou coisa assim.
Fiquem com essa casa pra vocês porque dela não quero mais nem o cheiro.

Antonio Luceni é mestre em Letras e escritor, membro e diretor da União Brasileira de Escritores – UBE.

domingo, 23 de outubro de 2011

sábado, 22 de outubro de 2011

Algumas coisinhas que irritam e outras tantas que alegram


Antonio Luceni
aluceni@hotmail.com

A vida é cheia de contrastes.
O dia é pleno com suas cores e nuances. Os detalhes habitam no dia. A hora preferida dos impressionistas para captarem as múltiplas possibilidades da cor. Mas a noite também existe. Existe e encobre manchas, dissimula olhares, minimiza horizontes. É na noite que todos os gatos ficam pardos, que os ratos saem dos esgotos e passam a habitar a superfície. Há as pessoas do dia. Há também as da noite.
Em dia de sol a praia é uma boa companhia. Na ausência dela, piscina, ranchos, um chuveirão ou uma mangueira qualquer... Dia de sol é dia de churrasco, dia de encontrar amigos, de tomar sorvete, de passear no parque ou andar à toa pela cidade. Dia de chuva é dia de ficar em casa, ler um livro, dormir um pouco mais e várias vezes ao dia. É dia de organizar armários, de jogar caxeta ou truco, de ligar para amigos esquecidos ou apenas de ficar observando a chuva deslizar por sobre a janela.
A fruta é boa, doce ou azedinha, de porte grande ou minúscula e frágil. Sorvê-la é bom, mas há que se plantar a semente, regar a árvore para poder continuar a comê-la. Não é possível somente usufruir do fruto, é preciso suar a camisa e arar a terra.
A alegria não é para sempre, assim como a tristeza. A pele não ficará esticadinha o tempo todo, vai enrugar, queiramos ou não. A garrafa de vinho chegará ao final. O pote de sorvete vai acabar. A pintura vai ficar desgastada. A minissaia ficará perdida. Esse corpinho irá engordar.
A vida é cheia de contrastes, e isso é bom.
Por mais desagradável que pareçam e por mais inconvenientes que alguns contrastes possam se caracterizar, todos são importantes. Só conseguimos identificar a tristeza e alegria, o prazeroso e o desagradável, o dia e a noite porque ambos existem, porque cada um se constitui como limite do outro, como parâmetro do outro.
Assim, a partir dos vários contrastes que vão surgindo em nossa frente, podemos determinar o que nos alegra ou entristeca, aquilo que nos acolhe ou o que nos repele. É por meio do contraste que vamos nos posicionando frente às coisas do mundo: o pai manso à mãe brava; os 40 graus daqui aos 27 graus de lá; o tráfego lento, a proximidade das coisas e a cadeira na calçada à correria, congestionamento e distância.
O contraste é bom também porque, por vezes, não sabemos de que lado queremos ficar. Ou melhor: há momentos que preferimos um a outro lado. Por exemplo: jovenzinhos são mais chegados ao calor e a mostrar os corpos, em geral; já os mais velhos precisam mais de cobertores, e os corpos já estão mais em segredo do que em outrora. Então, o gosto é circunstancial. Então, o que seria se não houvesse o outro lado?
Aquilo que me irrita agora talvez fosse minha alegria de antigamente. E atenção: talvez, o que me irrita agora poderá vir a ser minha alegria de amanhã! Portanto, tolerância é a palavra-chave. Um pouco de mal, um pouco de bem, nem tanto ao sol, nem tanto ao mar, Deus e o diabo na terra do sol! E o veneno também vira antídodo.
Vida-caleidoscópio. Metamorfose ambulante. Yin e yang. Preto no branco. Cravo e canela. Queijo com goiabada. Arroz com feijão... É, cada qual com seu contraste. Cada com sua alegria e dor de ser aquilo que é.

Antonio Luceni é mestre em Letras e escritor, membro e diretor da União Brasileira de Escritores – UBE.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Steven Jobs

Antonio Luceni

Confesso que não sou nenhum nerd tecnológico e que também minha relação com a informática e com as novas tecnologias é bastante prática. Sei o que preciso saber sobre as funções básicas de um computador, televisão, vídeo, celular, câmera digital, tablete etc. e mais que o suficiente para interagir com meus pares da velha e novas gerações.

Nunca fiz um curso de informática. Também nunca precisei de orientações mais profundas de ninguém para desenvolver e apresentar meus projetos em word, power point, excel... Com relação às novas mídias e linguagens, possuo três blogs, facebook, orkut (mas já está em desuso!), twitter (não consegui me envolver muito com ele), skype, três e-mails e comecei flertar com flicker e fotolog, mas logo os abandonei.

E isso tudo é uma beleza. De onde estou posso mandar e receber coisas, buscar informações com uma precisão danada, interagir com gente em outra cidade, estado ou país do mundo apenas num clique, e de graça.

Antes, para se montar uma simples folha de exercício ou avaliação, ficava horas selecionando coisas em livros e revistas, outro tempo danado numa livraria para tirar xerox, depois mais um tempão recortando e colando coisas (às vezes, uma página inteira ia para o lixo só para se aproveitar uma imagem ou legenda dela) e, por último, mandar reproduzir a quantidade de cópias necessária.

Hoje, em apenas algumas horas, já montamos tudo, consultando páginas e lugares dos mais diversos do mundo, somente com alguns cliques.

Antes, comprávamos rolos e mais rolos de filmes Kodak para tirar fotos de férias, aniversários, casamentos e formaturas e, depois meses, levávamos para uma ótica para "revelar" o dito filme, torcendo para que nenhuma foto tivesse queimado. E, confirmando a lei de Murphy, sempre queimava a de que a gente mais gostava.

Hoje, tiramos centenas de fotografias numa câmera digital, escolhemos as que queremos imprimir ou não, e ainda com a opção de editá-las, tirando ou acrescentando coisas, invertendo-as, classificando-as etc... Com celular resolvemos nossa vida: fotografando, mandando e recebendo e-mails etc...

Só por estes motivos já deveríamos agradecer a presença desses caras que dedicam suas vidas para nosso conforto e aprimoramento laboral. Só por estes motivos, ambientalistas poderiam agradecer pelas árvores não cortadas e pelas folhas de papéis economizadas com a presença das informações "virtuais". Só por estes motivos, nós poderíamos agradecer pelas ausências supridas e saudades amenizadas, pela otimização e democratização da informação e tudo mais.

Mas é preciso agradecer por mais. É preciso agradecer por vidas como a de Steven Jobs terem presença em nossas vidas com toda a capacidade e criatividade de que o ser humano é capaz. De alguém que, pela sua história, poderia ficar pelos cantos se maldizendo ou reclamando de tudo, mas que fez, esse sim, do limão a limonada. Por saber que o pobre também é capaz de pensar, de criar, de fazer diferença na vida das pessoas. De saber que aquilo que um despreza, desvaloriza, pode ser alegria de outros.

Tenho comigo uma coisa, uma ideia fixa: pessoas dessa envergadura não deveriam morrer. Ao menos, não tão cedo, porque fazem bem ao mundo, porque fazem bem ao seu semelhante, porque a presença delas na Terra é algo compensador, profícuo para todos.

As maçãs ficaram menos agradáveis sem a presença de Jobs por aqui.

UM DOS DISCURSOS DE JOBS: BRILHANTE:

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Vida-fruta

Antonio Luceni
aluceni@hotmail.com

A vida da gente é marcada por pequenos e grandes gestos, é feita de cores alegres e tristes, umas mais opacas, cinzentas, outras mais tropicais e vivas. Os sons também compõem a nossa história: todos temos uma trilha sonora particular que faz fundo musical para nascimentos e mortes, namoros e casamentos, encontros e desenlaces. Vida-tátil é aquela do pisar na grama verdinha para jogar bola, da areia úmida ou de minúsculos grãos soltinhos a afundar mediante cada passo na praia, do asfalto quente ou da terra molhada.

Tudo isto é válido e é de tudo isto também que somos formados, dos resíduos de tudo, como diria Drummond. Eu, particularmente, trago comigo o gosto das lembranças. Talvez porque, por vários momentos da vida de minha família – e de tantas outras milhares -, passamos por necessidades alimentares. Cada momento sorvido da abundância é precioso e tem um sabor todo especial.

Goiaba, goiabada e suco de goiaba: eram arrancadas do pé, ainda verdes ou de-vez... O bicho da goiaba nem tinha tempo de aparecer; só lá mais para o final da estação, quando já estávamos todos fartos. A vermelha é minha predileta. A branca foi coisa de curiosidade, da diferença, mas a vermelha é a mais saborosa. Também provei dos araçás – amarelo, roxo – sem nem saber quem eles eram. Goiabada cascão, feita num tacho grande, com pás feitas de madeira e moldadas com caco de vidro, duma garrafa quebrada ali no canto. Suco de goiaba é uma delícia; bem geladinho, então... hum... E o que sobrava a gente fazia “gelinho”. Coisa boa pra esse verão lascado das terras dos araçás.

Caqui: era uma fruta bastante esperada. O pé ficava todo lotado. Aquelas bolinhas verdes começavam a surgir depois de as folhas já quase não existirem no pé. Aí iam crescendo, mudando para um tom mais claro de verde, começavam a ficar meio rosa, depois laranja claro e, por último, um laranja intenso, quase florescente. Minha vó recolhia um a um, lavava-os e colocava-os numa grande bacia de plástico para gelar. Era nossa sobremesa depois do jantar, regada a histórias e mais histórias, numa roda grande no terreiro da chácara piloto. Caqui para mim tem gosto de histórias.

Mangas: no plural, assim mesmo! Havia tanta variedade que dava gosto. As “coquinho”, que eram compradas por quilo em São Paulo, nos serviam de “munição” para as “guerras” de manga. Cada grupo na sua trincheira e, aos vencedores, mais mangas. “Coração de boi”, “borbom”, “maçã”, “espada”, eram tantas que não dava para provar de todas num dia só. E imensas, quase do tamanho de nossa fome. Era uma coisa maravilhosa. Tiradas do pé, logo eram descascadas com os dentes mesmo e sorvidas no exato instante da colheita. Caldo de manga escorrendo pelos cantos da boca, cobrindo mãos, braços e barrigas... vivíamos com a barriga suja de caldo de manga!!

Abiu: fruta doce, mas que travava a boca no final.

Poncã: uma delícia, mas “dedo-duro”. Não tinha o que fizesse “calar a boca” dessa cagueta... metros de distância já éramos denunciados.

Jabuticaba: eita neguinha boa! Quantas vezes ficamos “entupidos” por causa dela.

Cana, pitanga (como gostava de pitanga!), laranja vermelha (existe, sim!), banana, coco, caju... ah, como adoro caju. Gosto da fruta, gosto do suco, gosto do doce... As castanhas eram juntadas numa lata de dezoito litros. Cheia, fazia-se uma grande fogueira e as castanhas eram lançadas dentro. Depois, só retirar as cinzas, salgar as castanhas e saboreá-las.

A vida é fruta gostosa tirada do pé. Algumas delas são mais doces, outras nem tanto assim; algumas fazem travar a boca da gente, criar nó na garganta; há as que precisam ser postas na geladeira para depois serem apreciadas, outras digeridas na hora da colheita; de algumas aproveitamos a polpa, o caroço e o bagaço, de outras só o caldo, e olhe lá!

 
Antonio Luceni é mestre em Letras e escritor. Membro e Diretor da União Brasileira de Escritores – UBE.