Por Antonio Luceni
Numa tarde amena, sob um vento agradável e ao som de pássaros e um mensageiro do vento é que aconteceu esta entrevista com a artista plástica Wilma Gottardi Guimarães.
Carismática do jeito que é, já nos recebeu com um largo sorriso e uma tala no braço, resultado de uma queda em sua casa. De energia contagiante, provocou, refletiu, sorriu e compartilhou de muitas coisas de sua vida pessoal, profissional, religiosa, de ser humano.
Com formação em Biologia pela Faculdade de Ciências e Letras de São José de Rio Preto, e aposentada como professora nesta área, só depois dos 50 anos dedicou-se às artes plásticas, matriculando-se num curso de desenho e pintura no Ateliê Fare Arte, de Márcia Porto, em Araçatuba/SP.
De lá para cá, nunca mais parou. Pintura em tela, painéis e azulejos, escultura, colagem, mosaico são algumas das técnicas utilizadas por essa artista que é só sensibilidade em pessoa.
De sua casa na fazenda pelos arredores de Araçatuba, concedeu a entrevista que se segue.
Antonio Luceni: Você tem um percurso de vida bastante rico nos mais variados temas. O que ficou para você dessa experiência toda?
Wilma Gottardi: A paixão. Não sei fazer nada se não estiver apaixonada. Tudo que faço é movido pelo meu desejo intenso de me relacionar com aquilo tudo. Se não houver paixão, desejo e vontade intensa de realizar algo, não funciona comigo.
Antonio Luceni: E quais são as paixões da sua vida?
Wilma Gottardi: São muitas... minha família, meus amigos, as artes de modo geral. Sou uma apaixonada pelas artes, é genético, biológico. Não saberia viver se não fosse por meio da linguagem artística. É no mundo possível das artes que eu me encontro, que eu consigo me expressar, dizer o que penso e sinto, que eu me completo. E o ensino também. É muito prazeroso pra mim ensinar, seja o que for. Quando me vejo já estou procurando ajudar as pessoas por meio do aprendizado. E quando ensino, também aprendo muito. É sempre uma troca. A vida é cheia de aprendizados, não é mesmo? (risos)
Antonio Luceni: Você desenvolveu trabalhos com diferentes técnicas. Conte um pouquinho desse processo pra gente.
Wilma Gottardi: Gosto, como disse, de me envolver com arte. Não importa se pintando, colando, desenhando, esculpindo... Quando entro numa fase mergulho intensamente nela. Então, tenho muitas coisas feitas e que podem ser vistas aqui por casa (mostra uma série de trabalhos expostos nas paredes e bancadas onde acontecia a entrevista), nos jardins, em outros espaços que temos no Mato Grosso e até fora do estado. Ultimamente estava muito envolvida com pinturas em azulejos. Fiz muitos trabalhos. Depois mandei emoldurá-los com molduras de cimento porque não os queria estáticos. Assim como os quadros, queria locomovê-los, transportá-los para onde desejasse, para uma exposição etc. Mas tenho trabalhos de todos os tipos: colagens... Fiz muitas colagens e ensinei professores e alunos de escolas públicas a fazerem trabalhos com colagens no intuito de dizer que a arte é possível com aquilo que a gente tem, que não precisa de materiais nobres ou inacessíveis para se fazer arte. É só usar a criatividade, ter boa vontade e pronto, as coisas acontecem.
Um dos trabalhos da artista expostos na parede. Pintura sobre azulejos.
Antonio Luceni: Você foi proprietária de um antiquário por mais de dez anos, em Araçatuba. Conte-nos um pouco dessa experiência.
Wilma Gottardi: Ah, foi uma época maravilhosa da minha vida. Como fui feliz e o quanto cresci nesse período. Foram doze anos de intenso aprendizado. Eu e uma amiga resolvemos abri-lo e a primeira coisa que fizemos foi pedir orientação para um professor de história da arte do MASP (Museu de Arte de São Paulo). A primeira ordem que ele nos deu foi comprar uma lista imensa de livros e estudar cada coisa de um antiquário: cristais, mobílias, lustres etc... O dinheiro que o Raul (marido dela) havia me dado para comprar peças foi todo gasto com livros. Mas foi muito bom pra gente aquilo. Li muito antes de comprar as primeiras peças. Foi muito bom me apropriar da história das peças, de suas origens, de suas composições etc. Depois, as viagens foram um capítulo à parte. Cada peça, cada móvel, cada objeto era escolhido a dedo por mim e minha sócia. Muitas peças eram encomendadas por clientes antes mesmo de viajarmos. Foi um tempo bom que não volta mais.
Antonio Luceni: E por que acabou?
Wilma Gottardi: Porque tudo acaba, não é mesmo? (Risos). Nada dura para sempre. Outros contextos foram surgindo, muitos clientes começaram a enfocar e a adquirir peças de origem duvidosa. Acabou... E também eu nunca fui uma boa comerciante, sabe... Muita coisa eu dava, vendia por um valor inferior ao que valia. Aquilo tudo para mim, o contato com os clientes, as discussões sobre as peças, suas histórias etc., tudo isso me interessava mais do que o dinheiro em si. Veja que, por conta desse meu ofício, tive oportunidade de conhecer a Nice, que também era antiquarista, ex-mulher do Roberto Carlos. Demos boas risadas juntas... Nunca fui apegada ao dinheiro. Ele sempre funcionou em minha vida como um elemento secundário. Até hoje é assim. Eu sou uma pessoa de hábitos simples, de uma vida simples. Gosto das coisas simples da vida.
Antonio Luceni: As artes plásticas foram surgindo em sua vida aos poucos, não é mesmo? Conte-nos como tudo aconteceu.
Wilma Gottardi: Na verdade desde novinha sentia atração pelo desenho e pela pintura. Estudava num colégio de freiras, em São Paulo, eu com meus 9, 10 anos já desenhava muito bem. A ponto de as irmãs se entusiasmarem com meus trabalhos. Acabei fazendo graduação em Biologia. Mas, mesmo como professora de Biologia, exercia meu ofício, ainda que amador, de artista. Adorava desenhar as plantas, os esquemas biológicos na lousa. Eram desenhos muito bons. Os colegas que entravam depois de mim na sala de aula, não queriam apagar a lousa porque tinham pena de sumir com os desenhos. Mas isso tudo ficou estacionado em mim até que, depois de aposentada, me matriculei num curso de pintura da Márcia Porto e me dediquei a esta área que amo tanto, que são as artes plásticas. Lembro-me que em meu primeiro desenho a Márcia me ofereceu dois lápis apenas: um preto e um na cor sépia. Depois que fiz meu desenho, ela quase não acreditou no que eu o tinha feito. Ficou um resultado muito bom para uma iniciante. (risos)
Primeiro desenho feito a lápis pela artista, em 1996. Ateliê Fare Arte.
Antonio Luceni: O que você espera com o seu trabalho de artista?
Wilma Gottardi: Que ele seja acessível. Quero que o que eu faço seja compreendido e assimilado por todos. A pessoa mais simples precisa ter acesso ao meu trabalho. Gosto que o povo tenha acesso ao que produzo.
Antonio Luceni: Existe algum artista que chama mais sua atenção, que a emocione mais?
Wilma Gottardi: São muitos... Mas acho que se tivesse que eleger um, seria a Frida Khalo. Pela espontaneidade do trabalho dela, pela verdade de sentimentos que há em sua obra. Veja que ela conseguiu se despir de todo formalismo, de toda casca e se mostrou, até de certa forma, como alguém ingênua, sem maiores pretensões. Gosto da arte dela porque é pura emoção, sentimento. E eu sou um pouco assim. Gosto que meu trabalho seja assim: cheio de emoção e sentimento. Uma obra dela de que eu gosto muito é “As duas Fridas”. Mas também fiquei impactada quando entrei em contato, pela primeira vez, com o trabalho de Picasso. Ver dois cômodos inteiros onde foi a casa dele, em Barcelona, com rascunhos da famosa Paloma foi demais pra mim. Aí a gente para pra pensar que o trabalho do artista é transpiração e não inspiração, como dizem.
As duas Fridas - Frida Khalo - Óleo s/ tela - 219 x 220 cm, 1939.
Antonio Luceni: Das muitas viagens que fez pelo mundo, conte-nos algum fato pitoresco ou alguma gafe por que tenha passado.
Wilma Gottardi: (Risos) Ah, foram muitas... E quem não as teve, não é mesmo? Mais uma que me marcou muito, foi uma experiência em Israel. Conforme andávamos pelos lugares santos e turísticos daquele país via palestinos queimando pneus no meio da rua, atirando pedras em nosso ônibus, mas nada muito fora do normal ou que nos causasse pânico. Acontece que num dos dias do passeio, num sábado, ficamos trancados no hotel em Israel porque lá eles não fazem nada no sábado. Acontece que acabamos descobrindo que as lojas palestinas ficavam abertas e vi ali uma ótima chance pra compras para o antiquário. Saí, fiz as compras e achei que tudo estava bem. Quando chegamos no aeroporto, fui cercada por guardas que me isolaram de todo o grupo e começaram a me hostilizar com palavras duras. Pediram pra que eu mostrasse tudo que levava na mala, não deixavam com que os guias me ajudassem... foi uma coisa horrível. Até hoje eu não sei por que fui investigada, por que me barraram no aeroporto. Eu só sei que o voo foi interrompido e, por sorte, eu pude ir nele. Se não, sei lá, acho que estaria lá até hoje. (risos)
Antonio Luceni: E um episódio bacana?
Wilma Gottardi: Barcelona... A Igreja da Sagrada Família, Gaudi... Eu não conhecia Gaudi à época. Ao menos o Gaudi que vi ali, com aquelas construções todas, com a imponência que tem o trabalho dele. O Parque Guell, com todo aquele colorido, com aqueles mosaicos todos... Aquilo me marcou muito. Mas também uma viagem louca para Ilha da Madeira, em Portugal. Depois que pousamos lá, numa aventura maluca e uma manobra de mestre do piloto, nos deparamos com um verdadeiro cemitério de aviões. O lugar era perigosíssimo para aterrissar. Mas depois que estávamos em solo, foi uma beleza, que lugar lindo. A temperatura média o ano todo é de 21, 22 graus. Uma estufa natural, em cima de uma região montanhosa e com cores que nunca vi antes na minha vida. Não dá para dizer que o roxo de lá é o mesmo daqui. São outros tons, outras nuanças... tudo muito lindo.
Igreja da Sagrada Família - Gaudi - Barcelona.
Parque Guell - Gaudi - Barcelona.
Antonio Luceni: Você conseguiria eleger os principais momentos de sua vida? Quais datas lhe são mais significativas?
Wilma Gottardi: Todas, Antonio. Cada dia da minha vida, da minha relação com o outro, com minha família é um dia especial. Eleger algum e desprezar os outros seria uma crueldade. Portanto, todos os dias são importantes para mim. Vivo cada um deles intensamente.
Antonio Luceni: Além de pintar e desenhar o que gosta de fazer?
Wilma Gottardi: Ler. Adoro ler, de tudo gosto de ler. Livros técnicos, pesquisas, literatura, história, tudo me interessa porque eu gosto de aprender. Não paro de ler. Mas um livro especialmente, que leio todas as noites é a Bíblia. Não consigo me imaginar, hoje, sem essa relação com Deus, com a palavra dele.
Antonio Luceni: Você acha que a gente precisa de religião?
Wilma Gottardi: Acho. Não consigo me imaginar sem uma relação com Deus, com a palavra dele, com a comunhão com as pessoas. Eu conheço tanta coisa nesse mundo e, ao mesmo tempo, é tão curto o espaço de tempo para a gente conhecer as coisas. Então, eu preciso dessa relação com Deus pra Ele me mostrar muito mais. Há muito mais coisas no universo pra eu conhecer e eu quero conhecer junto a Ele. Afinal, para que Ele criou isso tudo se não fosse pra gente conhecer? (risos)
Antonio Luceni: O que você mais valoriza no ser humano?
Wilma Gottardi: A humildade. Sem humildade acredito que a gente não é ninguém.
Antonio Luceni: E o que menos aprecia?
Wilma Gottardi: A traição e a mentira.
Antonio Luceni: Se você tivesse que deixar algum ensinamento, qual seria?
Wilma Gottardi: Amar a Deus sobre todas as coisas e ter muito, mas muito amor pelo próximo. Só isso já bastaria para uma vida possível.
Com a artista, defronte a um de seus painéis.