segunda-feira, 23 de abril de 2012

CRITICIDADE


Antonio Luceni
aluceni@hotmail.com

Sob a cidade estão enterrados os mortos com suas virtudes e pecados, com seus últimos desejos e ainda suas últimas palavras presas à boca. Sob a cidade há alguns pés de alface, algumas batatas e cenouras, algumas raízes de alecrim e manjericão. Enterrados no chão da cidade estão alguns brinquedos, alguns ossos de frango ou de gado, algumas meias velhas...
No chão da cidade há de tudo um pouco. Como adubos imperfeitos estão cacos de vidro, cerâmica de bloco e restos de concreto. Há organismos vivos que, como proletariados, fazem um trabalho repetitivo e ingrato. Higienizam o solo e criam certo dinamismo mudo, que não serve de marketing para ninguém.
Há também, sob o solo das cidades, uma rede imensa de esgotos, para onde os dejetos de todos nós vão diariamente, a cada minuto, criando um ciclo de podridão sem fim. Sabe aquela cuspida que você deu hoje pela manhã em sua pia, após escovar os dentes? Está no esgoto da cidade, agora. Sabe aquela escarrada, com um pouco de catarro e um pouco de sangue? Está no esgoto da cidade, agora. As fezes que lhe inchavam a barriga na manhã de hoje estão pelos esgotos da cidade, agora. A sobra de óleo, alguns poucos grãos de arroz ou de feijão, o creme do macarrão que restou na colher, o resto de coca que ficou na garrafa... todos eles estão no esgoto da cidade, agora.
Os esgotos da cidade não são visitados. Ninguém para o carro no acostamento ou se programa durante o dia ou a semana para visitar os esgotos da cidade. Ninguém está nem aí para saber como andam os esgotos das cidades. Mas todos, indiscriminadamente, fazem uso dos esgotos das cidades. Todos nós produzimos desejos e usamos os esgotos da cidade.
Certo dia um desses esgotos me chamou a atenção e me fez ver o quanto ele estava cheio de tudo isso. Sob forma de protesto – não dá para imaginar diferente – despejou um líquido marrom-esverdeado e, sem perceber, passei por entre ele. Reclamei, xinguei, lavei o máximo que pude, mas parecia que ele não queria se descolar de mim. Ficou o dia todo a me lembrar que ele estava por ali, que talvez já fizesse parte da composição química do meu corpo. (Talvez ele já fizesse parte de mim há tempo, mas somente agora pude pensar sobre estas coisas, sobre nossa relação mais orgânica).
Quase sempre não queremos encarar os esgotos da cidade. Precisamos deles, fazemos uso deles diariamente, mas optamos por uma relação velada, quase niilista. Optamos pela cidade de cima, com as ruas cobertas pela manta negra, pelos jardins floridos e gramas bem aparadas, pelas calçadas e seus ladrilhos. As coisas embaixo do tapete não nos ferem a vista.
Mas a podridão da cidade corre em seu interior para todos os lados. No interior da cidade não há classes sociais, nem metro quadrado mais caro. Todos os cantos da cidade são visitados por esgotos que, como veia, fazem a podridão circular equitativamente. Em todos os cantos da cidade, neste momento, há alguém dando uma descarga, jogando um balde de água suja num tanque qualquer, lavando uma calçada ou despejando a água de sangue do frango que acabou de se descongelar.
Por todos os cantos da cidade há das mais diversas situações de sujeira e, em todas elas, os esgotos é que fazem a recepção.

Antonio Luceni é mestre em Letras e escritor. Membro e Diretor de Integração Nacional da União Brasileira de Escritores – UBE.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Sobre o sabor do saber

Antonio Luceni

 
Que a escola vive uma crise sem precedentes, não há como negar; falar sobre isso é “chover no molhado”. Que devemos buscar modelos para diminuir o desgosto de se ensinar e aprender, também, é algo do senso comum. Que a escola que nossos pais – e que nós mesmos – frequentavam já é coisa do passado, é ponto passivo.

Então, qual modelo adotar? O que devemos fazer para que nossos filhos e alunos sintam no ato de ir e frequentar a escola o gosto pelo sabor do saber? As respostas não são fáceis, mas também não residem em “outro mundo”.

É comum ouvirmos de crianças, adolescentes e jovens o “eu não gosto de ir para escola”. Já ouvi depoimentos de pais que dizem que seus filhos de quatro ou cinco anos têm verdadeira aversão quando é chegada a “hora do colégio”.

É claro que aprendemos com o mundo. É claro que a escola não é o lugar, ou ao menos o único, em que o aprendizado se dá de forma sistematizada em nossas vidas; sobretudo na atual sociedade com a internet, com tantos cursos a distância, com tantos e-books, celulares conectados ao mundo, com tanta troca de informações entre as pessoas.

Aquela escola, lembra?, detentora de todas as informações e conhecimentos, onde o professor era seu principal guardião e que, arbitrariamente, repassava estes saberes em doses homeopáticas, já não convence mais. (Não poucas vezes escutei que “este assunto não é dessa série” de minhas professoras primárias, só porque fazia umas perguntinhas um pouco mais desafiadoras “para série”).

Pois é, “aquela escola” já não nos pertence mais. As coisas mudam, os tempos mudam, as pessoas mudam. Uma criança que nasce numa época como a que estamos vivendo, com tantas parafernálias tecnológicas, com um caldeirão de informações à sua volta não vai querer ficar à espera do “gotejamento do saber” que a escola insiste em passar. Uma criança que já nasce quase falando – você já parou para observar o quanto nossos bebês estão cada dia mais espertos? – não vai querer se submeter a ficar quatro ou cinco horas sentada numa cadeira e mesa desconfortáveis, olhando para nuca do colega, enquanto o mundo lá fora gira, propõe uma série de questões interessantes, muda de paisagem com suas cores, ventos, formas e cheiros...

Há várias escolas espalhadas pelo Brasil e pelo mundo que podem servir de modelo para que a escola retome a condição do saber com sabor. Esses modelos são grandemente difundidos pela mídia internacional e constantemente objetos de matérias em revistas especializadas em educação, participação em congressos e seminários da área, além de terem suas portas abertas para visitas de pesquisadores do mundo todo. Só a título de exemplo, podemos citar os casos de Reggio Emília, na Itália, a Escola da Ponte, de José Pacheco, em Portugal, ou mesmo, Escola da Vila, em São Paulo, entre outros.

O que falta, então, a meu ver, é vontade política do Estado brasileiro e da sociedade de modo geral (educadores, pais, alunos etc.) para implantar em nosso sistema educacional formas que propiciem uma educação significativa e com sabor.

Ou será que é o “angu sem sal nem açúcar” a comida que querem oferecer, deliberadamente?

Antonio Luceni é mestre em Letras e escritor. Membro e Diretor de Integração Nacional da União Brasileira de Escritores – UBE.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Feliz páscoa


Por Deise Machado

 
Páscoa é também o renascimento de muita coisa importante: além do nascimento do nosso Salvador, é tempo de mudar, agir, repensar, e, sobretudo olhar para dentro de nós mesmos, analisando o EU e deixando de lado antigas amarras, decepções e infortúnios.

Sem atentar especificamente para a questão religiosa, é necessário rever nossas posturas, repensar algo que fazemos errado e sabemos que fazemos errado e tentar modificar tais ações, revertendo sempre para o bem ao próximo e consequentemente a nós mesmos.

Páscoa significa passagem. Passar da nossa zona de conforto para chacoalhar e transformar nossa vida, por vezes individualista, egocêntrica, tentando fazer um paralelo entre o que falamos (nosso discurso), e o que de fato realizamos (nossos atos).

Nessa Páscoa vou sim saborear os deliciosos e engordativos ovos de chocolate.....mas vou também, por uns vários minutos, voltar o olhar pra dentro de mim e tentar analisar minhas ações e direcioná-las para um rumo melhor, um rumo nunca antes tentado. Espero que consiga deixar de olhar um pouco para o meu EU e tentar olhar com mais carinho, atenção, misericórdia, e zelo para o meu próximo. Este próximo que não são só meus amigos do dia a dia, mas minha família, minha filha, meu esposo, o dono do mercadinho, o moço do lava jato, a recepcionista do meu médico.....enfim; olhar para meu próximo e tentar enxergar o modo como eu gostaria de ser tratada. Talvez assim, consiga praticar a máxima que propõe o poeta: “Gentileza gera gentileza”.

Feliz e transformadora Páscoa a todos!

Deise Machado é pedagoga e Orientadora Pedagógica da Secretaria Municipal da Educação de Araçatuba.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

LÚCIO


Antonio Luceni
aluceni@hotmail.com

As histórias que ouvimos dele, passadas por avós, tios e tias e até pela mãe, é de uma criança que, assim como milhares de outras no nordeste brasileiro, desde cedo aprendem o que é sofrer.
Lata d’água na cabeça de uma criança com apenas cinco ou seis anos de idade, léguas e mais léguas a pé para comprar um produto de primeira necessidade, o alimento parco do dia a dia. As brincadeiras são deixadas de lado para as horas vagas, para quando houver tempo, já que há muito trabalho e poucos trabalhadores.
As roupas são gastas... na verdade os primeiros anos de vida são como de bicho bruto, ou seja, a própria pele é a vestimenta. Moscas e mosquitos são companhia constante. A gente já nasce sabendo que qualquer hora irá morrer, ninguém precisar chegar a esta conclusão pra gente.
Como tantas outras crianças também, foi criado na garapa; uma água mal adoçada, esquentada no fogão de lenha, em substituição ao leite, artigo de luxo para muitos em terra tão hostil como a que ele viveu.
Quase não houve tempo para o estudo: inicialmente foi alfabetizado pela própria mãe, em condições precárias, em sala de aula improvisada, sem livro, nem caderno ou lápis que merecessem estar numa escola. Depois, foi completando os estudos aos poucos: num ano porque o trabalho o impedia, noutro porque já não tinha mais ânimo para prosseguir, e em um outro os retomou porque tomou consciência da importância da escolaridade na vida da gente. Até hoje é um eterno aprendiz. Quer fazer faculdade. E disse que é de Matemática.
Nas andanças da vida, foi encaminhado para um casamento – ou ajuntamento, é melhor – que não foi lá grandes coisas. O saldo positivo foram os filhos, que foram e são seu maior combustível para trabalhar, perseguir algum alvo e deixar-lhes abrigados, e uma outra sorte na vida conjugal. É verdade que não estão vivendo do modo como esperava, mas é preciso que a vida continue.
Já faz uns dois anos que ele encontrou um novo motivo para viver. Foi também nesse tempo que ele encontrou um outro motivo para sonhar e renovar suas esperanças. Ficou mais jovem nesse período, voltou a sorrir com mais frequência, está até mais bonito por conta desse seu novo amor.
Neste final de semana irá formalizar esse novo momento, esse novo marco em sua vida. Irá se casar. Dessa vez, de fato: com cerimônia, padrinhos, roupa na estica (que quase deixa a gente doido na hora de escolher a cor, a camisa com a qual conjugar e tudo o mais), uma festa para todos com os quais irá dividir sua alegria.
O nome dela é Célia. Uma mulher que encantou a todos nós com seu jeito objetivo e autêntico de ser. Que com maestria também conduziu uma família sozinha que, tal qual o Lúcio, é batalhadora, tem metas boas na vida e que também tem o direito de ser feliz.
O que posso desejar para vocês, meus irmãos, é que sejam muito felizes, que tenham uma vida de respeito e de carinho e que, daqui para frente, sejam cada vez mais unidos e cúmplices em tudo o que fizerem.
Feliz casamento para vocês dois. Boa sorte daqui para frente, Lúcio. Você merece.

Antonio Luceni é mestre em Letras e escritor. Diretor de Integração Nacional da União Brasileira de Escritores – UBE.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

O milagre da passagem


Antonio Luceni
aluceni@hotmail.com

Nesta semana, cristãos de todo o mundo comemoram o milagre da passagem. Como sinal da esperança no coração dos homens, desde a antiguidade judeus celebravam a páscoa como forma de dizer que “sim, é possível uma vida melhor”. É verdade que a primeira celebração não teve nada de ovos de chocolate, coelhinhos e bombons trufados. Pelo contrário: ervas amargas e sentimento de alerta. Afinal, tudo do velho deveria ser deixado para trás e uma vida nova se anunciava aos crentes.
O cordeiro sacrificado para alimentar todas as famílias na noite que antecedeu a diáspora judaica também o foi feito com a morte do Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. Cristo é o pão da vida, o alimento que nutre todos os que Dele provam e, conforme Ele mesmo garantiu, nunca mais têm fome ou sede.
Páscoa para mim sempre foi, e continuará sendo, o momento mais sublime de nossa fé. O natal é importante; também cumprimento de uma promessa realizada há milênios, como dádiva do céu: a esperança começa. Mas somente com a ressurreição é que temos a certeza e a revelação da plenitude divina de Jesus Deus. Porque não há novidade no nascimento. Todos nós nascemos. Também, não há novidade na morte. Todos nós morremos. Mas foi com a ressurreição que reascendemos nossas esperanças num futuro melhor, numa outra vida possível, na esperança de que a história não termina por aqui.
Diferente do sentimento de gastança e de comilança a que estamos submetidos em todos os feriados, na Páscoa deveríamos comer ervas amargas e reunir a família para pensar no Cordeiro que deu a sua vida por nós, foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia para nos dar a esperança da vida.
A primeira páscoa também foi resultado da própria indignação de Deus frente aos mandos e desmandos de um louco faraó que humilhava os filhos de Javé. Como escravos e forasteiros eram perseguidos, violados em suas crenças e diminuídos como nação.
Nós também temos nossos governantes loucos, que tiram nosso sono com tantos impostos, que nos humilham como nação e que nos envergonham frente aos poderes do mundo. Vez ou outra (numa constância desmedida), somos manchete internacional com desvios de dinheiro, altos reajustes de salários, enquanto milhares de pessoas passam fome e perdem suas esperanças.
Este é tempo e o momento de renovarmos nossas esperanças e usarmos de nossa principal e melhor arma para sermos livres do cativeiro do Egito, dos loucos faraós que nos rodeiam: o voto.
Também comemos nossas ervas amargas diariamente, quando temos que encarar e vivenciar o capitalismo desenfreado, no qual também somos escravos, onde nossa força de trabalho são usados para enriquecer a poucos e para viver de forma desgraçada e aviltante. Por justiça social entendem alguns com risos, soberba e prepotência.
Mas há esperança. A ressurreição de Cristo foi no sentido de dizer que todos os reinos passam. Por mais que o tempo seja desgastante, por mais que a morte segure lá, por dois ou três dias, o Cordeiro de Deus, Ele ressurgirá com poder e glória para nos dar ESPERANÇA.

Antonio Luceni é mestre em Letras e escritor. Diretor de Integração Nacional da União Brasileira de Escritores – UBE.