Antonio Luceni
aluceni@hotmail.com
Sob a cidade estão enterrados os mortos com suas
virtudes e pecados, com seus últimos desejos e ainda suas últimas palavras
presas à boca. Sob a cidade há alguns pés de alface, algumas batatas e
cenouras, algumas raízes de alecrim e manjericão. Enterrados no chão da cidade
estão alguns brinquedos, alguns ossos de frango ou de gado, algumas meias
velhas...
No chão da cidade há de tudo um pouco. Como adubos
imperfeitos estão cacos de vidro, cerâmica de bloco e restos de concreto. Há
organismos vivos que, como proletariados, fazem um trabalho repetitivo e
ingrato. Higienizam o solo e criam certo dinamismo mudo, que não serve de
marketing para ninguém.
Há também, sob o solo das cidades, uma rede imensa
de esgotos, para onde os dejetos de todos nós vão diariamente, a cada minuto,
criando um ciclo de podridão sem fim. Sabe aquela cuspida que você deu hoje
pela manhã em sua pia, após escovar os dentes? Está no esgoto da cidade, agora.
Sabe aquela escarrada, com um pouco de catarro e um pouco de sangue? Está no
esgoto da cidade, agora. As fezes que lhe inchavam a barriga na manhã de hoje
estão pelos esgotos da cidade, agora. A sobra de óleo, alguns poucos grãos de
arroz ou de feijão, o creme do macarrão que restou na colher, o resto de coca
que ficou na garrafa... todos eles estão no esgoto da cidade, agora.
Os esgotos da cidade não são visitados. Ninguém para
o carro no acostamento ou se programa durante o dia ou a semana para visitar os
esgotos da cidade. Ninguém está nem aí para saber como andam os esgotos das
cidades. Mas todos, indiscriminadamente, fazem uso dos esgotos das cidades.
Todos nós produzimos desejos e usamos os esgotos da cidade.
Certo dia um desses esgotos me chamou a atenção e me
fez ver o quanto ele estava cheio de tudo isso. Sob forma de protesto – não dá
para imaginar diferente – despejou um líquido marrom-esverdeado e, sem
perceber, passei por entre ele. Reclamei, xinguei, lavei o máximo que pude, mas
parecia que ele não queria se descolar de mim. Ficou o dia todo a me lembrar
que ele estava por ali, que talvez já fizesse parte da composição química do
meu corpo. (Talvez ele já fizesse parte de mim há tempo, mas somente agora pude
pensar sobre estas coisas, sobre nossa relação mais orgânica).
Quase sempre não queremos encarar os esgotos da
cidade. Precisamos deles, fazemos uso deles diariamente, mas optamos por uma
relação velada, quase niilista. Optamos pela cidade de cima, com as ruas
cobertas pela manta negra, pelos jardins floridos e gramas bem aparadas, pelas
calçadas e seus ladrilhos. As coisas embaixo do tapete não nos ferem a vista.
Mas a podridão da cidade corre em seu interior para
todos os lados. No interior da cidade não há classes sociais, nem metro
quadrado mais caro. Todos os cantos da cidade são visitados por esgotos que,
como veia, fazem a podridão circular equitativamente. Em todos os cantos da
cidade, neste momento, há alguém dando uma descarga, jogando um balde de água
suja num tanque qualquer, lavando uma calçada ou despejando a água de sangue do
frango que acabou de se descongelar.
Por todos os cantos da cidade há das mais diversas
situações de sujeira e, em todas elas, os esgotos é que fazem a recepção.
Antonio Luceni é mestre em Letras e escritor. Membro e Diretor de Integração Nacional da União Brasileira de Escritores – UBE.