sábado, 28 de julho de 2012

Aspectos do processo de Urbanização em "Capitães da areia", de Jorge Amado


ASPECTOS DO PROCESSO DE URBANIZAÇÃO EM “CAPITÃES DE AREIA”, DE JORGE AMADO

Antonio Luceni dos Santos
Especialista em Ensino do Texto – Unesp, 2004
Mestre em Letras – UFMS, 2008
Graduando em Arquitetura e Urbanismo
FAU-UNITOLEDO

Resumo
O presente trabalho objetiva relacionar aspectos do Processo de Urbanização e Formação das Cidades à obra “Capitães de areia”, do escritor baiano Jorge Amado. Na referida obra, o escritor brasileiro faz uma série de descrições, de forma bastante meticulosa, como que a “pintar” uma imagem da cidade de Salvador/BA da década de 1930. Aspectos como “segregação”, “setorização”, “eixos urbanos”, entre outros, além de ideias como “a cidade e a luta de classes”, “políticas públicas de habitação social” etc. são facilmente detectadas na obra citada. Pelo fato de ambos os temas, “urbanização” e “literatura”, trazerem em sua estrutura central a preocupação com as condições de vida (o primeiro ligado mais ao material e o segundo ao espiritual/imaterial) do ser humano e a sensibilização para temas práticos do dia a dia, é que consideramos tais aspectos relevantes em ambos os casos.

Palavras-chave: Urbanização, Literatura, Formação das cidades, Jorge Amado

1 INTRODUÇÃO

Pensar a cidade sob a perspectiva pragmática de um aglomerado de pessoas e volumes de cimento, madeira e ferro, com vias de acesso, iluminação pública, rede de esgotos etc. e não percebê-la sob as múltiplas relações e sensações criadas a partir do diálogo entre seus vários componentes, é, a nosso ver, não pensar cidade.
Quando pensamos em cidade, e esta, como a materialização de um processo maior, o de urbanização, identificamo-la como um organismo dinâmico, cheio de matizes e, por isso mesmo, complexa, incógnita, universo a ser explorado e, mais que isso, gerenciado de modo a atender às diferentes forças presentes nela.
Há várias formas de se perceber esse dinamismo próprio da cidade. De forma mais objetiva, a observação direta é o melhor caminho. Como são as condições de vida dos moradores de sua cidade? Todos têm acesso aos mesmos bens e serviços oferecidos por ela? Onde você mora? Onde o prefeito ou vereadores de sua cidade moram? Onde a pessoas mais simples de sua cidade moram? Há distinção entre as várias paisagens urbanas de cada uma dessas áreas? Qual a função social exercida por cada uma das personagens citadas antes? Todas são prestigiadas equitativamente ou há os que têm privilégios, sejam de que natureza for? Como são as vias públicas de sua cidade? Todas têm a mesma largura? Todas são pavimentadas? Onde e como estão as áreas de convívio público de sua cidade (praças, parques, centros culturais, centros esportivos etc.)? Todos estes espaços estão bem equipados, em bom funcionamento? Como e onde estão os equipamentos culturais de sua cidade (bibliotecas, salas de cinemas, galerias de arte, salas de concerto etc.)? E os equipamentos educacionais, estão providos de todas as estruturas necessárias para o bom funcionamento? E a acessibilidade de sua cidade (rampas para cadeirantes, guias de solo para deficientes visuais, semáforos adaptados para pessoas com mobilidade reduzida ou idosos etc.)? Como se relacionam os moradores de sua cidade? Há forte distinção entre classes sociais, locais de convívio, relações de serviços etc.? São questões que, somadas a inúmeras outras, nos ajudam a deter o olhar para muitos aspectos que, por vezes, passam desapercebidos e que, observados, nos dizem muito a respeito da formação e da dinâmica de nosso lugar de vivência e convivência, ou seja, nossa cidade.
Um outro modo de perceber o meio no qual estamos inseridos é a partir das impressões e leituras que artistas, poetas e escritores fazem de nosso ambiente, de nossas cidades. E é por esta última opção que decidimos relacionar elementos teóricos sobre o processo de urbanização, tendo a cidade como expressão maior dele, embasados nos conceitos de Paul Singer e Maria Encarnação Beltrão Sposito, com o texto literário do escritor baiano Jorge Amado, em Capitães da areia.
Conforme apresentado no resumo do presente artigo, Amado descreve muitas partes da cidade que ambienta a narrativa de um de seus mais conhecidos romances, apontando aspectos das materialidades de Salvador (vias e artérias, bairros e cercanias, cidade alta e cidade baixa, casarões e trapiches...) e as relações que os moradores das mais diferentes esferas e atuações sociais mantêm entre a urbe e si mesmos, atendendo às considerações que Sposito (1994, p. 9) faz, quando diz:

É preciso considerar todas as determinantes econômicas, sociais, políticas e culturais, que no correr do tempo, constroem, transformam e reconstroem a cidade, se queremos entendê-la na dinâmica de um espaço que está em constante estruturação, respondendo e ao mesmo tempo dando sustentação às transformações engendradas pelo fluir das relações sociais.

Diferente de Sposito, Amado não tem o compromisso de fazer um relato fiel da realidade descrita, uma vez seu objetivo maior seja a ars poética, contudo mesmo que as “pinceladas” sejam carregadas de muita tinta, o caricato ou relevo dessa “pintura” sirva, mais uma vez, para chamar a atenção do leitor-fruidor-transeunte para a cidade e suas relações.
Optamos, ainda, por construir o restante do presente artigo com excertos dos dois textos (teóricos e literário) de modo que um ajudasse na reflexão do outro e, neste movimento dialógico, ilustrar e enfatizar aspectos presentes no processo de urbanização e materialização da cidade.

2 Diálogos entre os textos teóricos e a literatura
Aspecto teórico: cidade como espaço de dominação de uma classe sobre a outra

Citação teórica: (SINGER)
“É preciso ainda que se criem instituições sociais, uma relação de dominação e de exploração enfim, que assegure a transferência do mais-produto do campo à cidade. Isto significa que a existência da cidade pressupõe uma participação diferenciada dos homens no processo de produção e de distribuição, ou seja, uma sociedade de classes. Pois, de outro modo, a transferência de mais produto não seria possível. Uma sociedade igualitária, em que todos participam do mesmo modo de produção e na apropriação do produto, pode, na verdade, produzir um excedente, mas não haveria como fazer com que uma parte da sociedade apenas se dedicasse à sua produção, para que outra parte dele se apropriasse”. (1998, p. 136)

Citação literária: (AMADO)
“Depois os Capitães da Areia invadiam a casa numa noite, levavam os objetos valiosos e no trapiche Sem-Pernas gozava invadido por uma grande alegria, alegria de vingança. Porque naquelas casas, se o acolhiam, se lhe davam comida e dormida, era como cumprindo uma obrigação fastidiosa. Os donos da casa evitavam se aproximar dele, e o deixavam na sua sujeira, nunca tinham uma palavra boa para ele. Olhavam-no sempre como a perguntar quando ele iria. E muitas vezes a senhora que se comovera com sua história, contada na porta em voz soluçante e o acolhera, mostrava evidentes sinais de arrependimento. Para Sem-Pernas elas o acolhiam de remorso. Porque o Sem-Pernas achava que eles eram todos culpados da situação de todas as crianças pobres. E odiava a todos, com um ódio profundo”. (1936, p. 137)

Aspecto teórico: predominância do trabalho assalariado
Citação teórica: (SPOSITO)
“A predominância do trabalho assalariado, e por outro lado o controle, cada vez mais definitivo, da produção pelo capital, dão ao desenvolvimento capitalista um novo rumo, através da ampliação do espectro de acumulação e reprodução do capital”. (1994, p. 47)

Citação literária: (AMADO)
“Vão para a porta do sindicato. Entram homens: negros, mulatos, espanhóis e portugueses. Veem quando João de Adão e outros estivadores saem entre vivas dos operários das linhas de bonde. Eles viviam também. João Grande e Barandão, porque gostam do doqueiro João de Adão. Pedro Bala não só por isso, como porque acha bonito o espetáculo da greve, é como uma das mais belas aventuras dos Capitães da Areia”. (1936, p. 279)

Aspecto teórico: crescimento populacional x crescimento urbano
Citação teórica: (SPOSITO)
“O rápido crescimento populacional gerava uma procura por espaço, e por outro lado o crescimento territorial das cidades no século XIII e primeira metade do século XIX estava restrito a um determinado nível, além do que ficava impossível percorrer a pé as distâncias entre os locais de moradia e trabalho. Ou seja, o crescimento populacional não podia ser acompanhado em seu ritmo pelo crescimento territorial”. (1994, p. 55)

Citação literária: (AMADO)
“Parece que há uma festa na cidade, mas uma festa diferente de todas. Passam grupos de homens que conversam, os automóveis cortam as ruas conduzindo gente para o trabalho, empregados no comércio riem, a Ladeira da Montanha está cheia de gente que sobe e desce, os elevadores também estão parados. As ‘marinetes’ vão entupidas, gente sobrando pelas portas. Os grupos de grevistas passam silenciosos para a sede do sindicato, onde vão ouvir a leitura do manifesto dos estivadores, que João de Adão conduz nas suas mãos grandes. Na porta do sindicato grupos conversam, soldados montam guarda”. (1936, p. 278)

Aspecto teórico: problemas urbanos como poluição, insalubridade, falta de infra-estrutura
Citação teórica: (SPOSITO)
“A falta de coleta de lixo, de rede de água e esgoto, as ruas estreitas para  a circulação, a poluição de toda ordem, moradias apertadas, falta de espaço para o lazer, enfim, insalubridade e feiúra eram problemas urbanos, na medida em que se manifestavam de forma acentuada nas cidades, palco de transformações econômicas, sociais e políticas. Contudo, é fundamental observar que estes problemas constituíam manifestações claras da etapa pela qual o desenvolvimento do modo de produção capitalista estava passando”. (1994, p. 58)

Citação literária: (AMADO)
“Omolu mandou a bexiga negra para a cidade. Mas lá em cima os homens ricos se vacinaram, e Omolu era uma deusa das florestas da África, não sabia destas coisas de vacina. E a varíola desceu para a cidade dos pobres e botou gente doente, botou negro cheio de chaga em cima da cama. Então vinham os homens da Saúde Pública, metiam os doentes num saco, levavam para o lazareto distante. As mulheres ficavam chorando, porque sabiam que eles nunca mais voltariam.”. (1936, p. 158)

Aspecto teórico: discrepância de rendas e condições de vida
Citação teórica: (SPOSITO)
“A possibilidade de acesso à moradia, por exemplo, está subordinada ao nível salarial. Ao discutirmos o desenvolvimento do capitalismo monopolista, vimos como a troca desigual apóia-se no fato de que os trabalhadores de todo o mundo capitalista recebem salários diferentes para produzir riquezas de mesmo valor. De fato, nós sabemos que o trabalhador que recebe o piso salarial nacional, não consegue sequer alimentar devidamente sua família, o que dizer de ter acesso a uma moradia, pela compra ou aluguel do imóvel”. (1994, p. 73)

Citação literária: (AMADO)
“Durante anos [o trapiche] foi povoado exclusivamente pelos ratos que o atravessavam em corridas brincalhonas, que roíam a madeira das portas monumentais, que o habitavam como senhores exclusivos. Em certa época um cachorro vagabundo procurou como refúgio contra o vento e contra a chuva. Na primeira noite não dormiu, ocupado em despedaçar ratos que passavam na sua frente. Dormiu depois algumas noites, ladrando à lua pela madrugada, pois grande parte do teto já ruíra e os raios da lua penetravam livremente, iluminando o assoalho de tábuas grossas. Mas aquele era um cachorro sem pouso certo e cedo partiu em busca de outra pousada, o escuro de uma porta, o vão de uma ponte, o corpo quente de um cadela. E os ratos voltaram a dominar até que os Capitães da Areia lançaram as suas vistas para o casarão abandonado”. (1936, p. 30)

Aspecto teórico: o Estado e a valorização dos espaços urbanos
Citação teórica: (SPOSITO)
“A nível de intra-urbano, o poder público escolhe para seus investimentos em bens e serviços coletivos, exatamente os lugares da cidade onde estão os segmentos populacionais de maior poder aquisitivo; ou que poderão ser vendidos e ocupados por estes segmentos pois é preciso valorizar as áreas. Os lugares da pobreza, os mais afastados, os mais densamente ocupados vão ficando no abandono...”. (1994, p. 74)

Citação literária: (AMADO)
“O ‘Grande Carrossel Japonês’ não era senão um pequeno carrossel nacional, que vinha de uma triste peregrinação pelas paradas cidades do interior naqueles meses de inverno, quando as chuvas são longas e o Natal está muito distante ainda. De tão desbotada que estava a tinta, tinta que antigamente era azul e vermelha e agora o azul era um branco sujo e o vermelho um quase cor-de-rosa, e de tantos pedaços que faltavam em certos cavalos e em certos bancos, Nhôzinho França resolvou não armá-lo numa das praças centrais da cidade e, sim, em Itapagipe. Ali as famílias não são tão ricas, há muitas ruas só de operários e as crianças pobres saberiam gostar do velho carrossel desbotado.”. (1936, p. 70)
Evidente que poderíamos, aqui, elencar muitos outros aspectos que constituem o processo de urbanização e, em especial, elementos característicos da cidade, e propor o diálogo com a obra de Amado. Também poderíamos, como pode ser facilmente verificado, entrelaçar citações teóricas e literárias de modo a manter um diálogo intertextual entre os dois gêneros. Contudo, os exemplos expostos acima são mais que suficientes para ilustrar que há muitos meios de se perceber e identificar a constituição da cidade e do dinamismo presente no processo de urbanização, entre os quais a partir de peças literárias.

3. Considerações finais

Identificar e relacionar os vários elementos constitutivos da cidade a partir do processo dinâmico que é a urbanização é, além de necessário, condição primeira, a nosso ver, para se propor ações ou projetos que tenham em seu bojo a busca de equilíbrio entre as várias forças e interesses dos agentes da urbe. Não há como, em nossa opinião, pensar uma cidade e agir sobre ela sem antes levar em consideração que por ela ser um organismo vivo e dinâmico tudo que é feito, mexido, proposto etc. interfere de modo drástico a vida de todos.
Também, em nosso ponto de vista, há que se ter em mente que todos os agentes sociais (gestores públicos, moradores, empreendedores, agente imobiliários, empreiteiras, comerciantes e empresários etc...) precisam dialogar entre si de forma a buscar equacionar as discrepâncias existentes na sociedade, seja do ponto de vista econômico, de moradia, de saneamento básico, educação, saúde pública, ou sob qualquer outro aspecto que seja de interesse social.
Não podemos nos esquecer, também, que o Estado é o principal responsável para organizar a cidade e propor ações que viabilizem essa equitatividade de relações, que privilegie os que menos são favorecidos social e financeiramente etc.


5. Bibliografia
SINGER, Paul. Economia política da urbanização. São Paulo: Contexto, 1998.
SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão. Capitalismo e urbanização.São Paulo: Contexto, 1994.
AMADO, Jorge. Capitães da areia. São Paulo: Martins Editora, 1936.