ASPECTOS
DO PROCESSO DE URBANIZAÇÃO EM “CAPITÃES DE AREIA”, DE JORGE AMADO
Antonio
Luceni dos Santos
Especialista
em Ensino do Texto – Unesp, 2004
Mestre em
Letras – UFMS, 2008
Graduando
em Arquitetura e Urbanismo
FAU-UNITOLEDO
e-mail: aluceni@hotmail.com
Resumo
O
presente trabalho objetiva relacionar aspectos do Processo de Urbanização e
Formação das Cidades à obra “Capitães de areia”, do escritor baiano Jorge
Amado. Na referida obra, o escritor brasileiro faz uma série de descrições, de
forma bastante meticulosa, como que a “pintar” uma imagem da cidade de
Salvador/BA da década de 1930. Aspectos como “segregação”, “setorização”,
“eixos urbanos”, entre outros, além de ideias como “a cidade e a luta de
classes”, “políticas públicas de habitação social” etc. são facilmente
detectadas na obra citada. Pelo fato de ambos os temas, “urbanização” e
“literatura”, trazerem em sua estrutura central a preocupação com as condições
de vida (o primeiro ligado mais ao material e o segundo ao
espiritual/imaterial) do ser humano e a sensibilização para temas práticos do
dia a dia, é que consideramos tais aspectos relevantes em ambos os casos.
Palavras-chave: Urbanização, Literatura, Formação
das cidades, Jorge Amado
1
INTRODUÇÃO
Pensar a cidade sob a perspectiva pragmática de um
aglomerado de pessoas e volumes de cimento, madeira e ferro, com vias de
acesso, iluminação pública, rede de esgotos etc. e não percebê-la sob as
múltiplas relações e sensações criadas a partir do diálogo entre seus vários
componentes, é, a nosso ver, não pensar cidade.
Quando pensamos em cidade, e esta, como a
materialização de um processo maior, o de urbanização, identificamo-la como um
organismo dinâmico, cheio de matizes e, por isso mesmo, complexa, incógnita,
universo a ser explorado e, mais que isso, gerenciado de modo a atender às
diferentes forças presentes nela.
Há várias formas de se perceber esse dinamismo
próprio da cidade. De forma mais objetiva, a observação direta é o melhor
caminho. Como são as condições de vida dos moradores de sua cidade? Todos têm
acesso aos mesmos bens e serviços oferecidos por ela? Onde você mora? Onde o
prefeito ou vereadores de sua cidade moram? Onde a pessoas mais simples de sua
cidade moram? Há distinção entre as várias paisagens urbanas de cada uma dessas
áreas? Qual a função social exercida por cada uma das personagens citadas
antes? Todas são prestigiadas equitativamente ou há os que têm privilégios,
sejam de que natureza for? Como são as vias públicas de sua cidade? Todas têm a
mesma largura? Todas são pavimentadas? Onde e como estão as áreas de convívio
público de sua cidade (praças, parques, centros culturais, centros esportivos
etc.)? Todos estes espaços estão bem equipados, em bom funcionamento? Como e
onde estão os equipamentos culturais de sua cidade (bibliotecas, salas de
cinemas, galerias de arte, salas de concerto etc.)? E os equipamentos
educacionais, estão providos de todas as estruturas necessárias para o bom
funcionamento? E a acessibilidade de sua cidade (rampas para cadeirantes, guias
de solo para deficientes visuais, semáforos adaptados para pessoas com
mobilidade reduzida ou idosos etc.)? Como se relacionam os moradores de sua
cidade? Há forte distinção entre classes sociais, locais de convívio, relações
de serviços etc.? São questões que, somadas a inúmeras outras, nos ajudam a
deter o olhar para muitos aspectos que, por vezes, passam desapercebidos e que,
observados, nos dizem muito a respeito da formação e da dinâmica de nosso lugar
de vivência e convivência, ou seja, nossa cidade.
Um outro modo de perceber o meio no qual estamos
inseridos é a partir das impressões e leituras que artistas, poetas e
escritores fazem de nosso ambiente, de nossas cidades. E é por esta última
opção que decidimos relacionar elementos teóricos sobre o processo de
urbanização, tendo a cidade como expressão maior dele, embasados nos conceitos
de Paul Singer e Maria Encarnação Beltrão Sposito, com o texto literário do
escritor baiano Jorge Amado, em Capitães da areia.
Conforme apresentado no resumo do presente artigo,
Amado descreve muitas partes da cidade que ambienta a narrativa de um de seus
mais conhecidos romances, apontando aspectos das materialidades de Salvador
(vias e artérias, bairros e cercanias, cidade alta e cidade baixa, casarões e
trapiches...) e as relações que os moradores das mais diferentes esferas e
atuações sociais mantêm entre a urbe e si mesmos, atendendo às considerações
que Sposito (1994, p. 9) faz, quando diz:
É preciso considerar todas as determinantes
econômicas, sociais, políticas e culturais, que no correr do tempo, constroem,
transformam e reconstroem a cidade, se queremos entendê-la na dinâmica de um
espaço que está em constante estruturação, respondendo e ao mesmo tempo dando
sustentação às transformações engendradas pelo fluir das relações sociais.
Diferente de Sposito, Amado não tem o compromisso
de fazer um relato fiel da realidade descrita, uma vez seu objetivo maior seja
a ars poética, contudo mesmo que as “pinceladas” sejam carregadas
de muita tinta, o caricato ou relevo dessa “pintura” sirva, mais uma vez, para
chamar a atenção do leitor-fruidor-transeunte para a cidade e suas relações.
Optamos, ainda, por construir o restante do presente
artigo com excertos dos dois textos (teóricos e literário) de modo que um
ajudasse na reflexão do outro e, neste movimento dialógico, ilustrar e
enfatizar aspectos presentes no processo de urbanização e materialização da
cidade.
2
Diálogos entre os textos teóricos e a literatura
Aspecto
teórico: cidade como espaço de dominação de uma classe sobre a outra
Citação
teórica: (SINGER)
“É
preciso ainda que se criem instituições sociais, uma relação de dominação e de
exploração enfim, que assegure a transferência do mais-produto do campo à
cidade. Isto significa que a existência da cidade pressupõe uma participação
diferenciada dos homens no processo de produção e de distribuição, ou seja, uma
sociedade de classes. Pois, de outro modo, a transferência de mais produto não
seria possível. Uma sociedade igualitária, em que todos participam do mesmo
modo de produção e na apropriação do produto, pode, na verdade, produzir um
excedente, mas não haveria como fazer com que uma parte da sociedade apenas se
dedicasse à sua produção, para que outra parte dele se apropriasse”. (1998, p.
136)
Citação
literária: (AMADO)
“Depois
os Capitães da Areia invadiam a casa numa noite, levavam os objetos valiosos e
no trapiche Sem-Pernas gozava invadido por uma grande alegria, alegria de
vingança. Porque naquelas casas, se o acolhiam, se lhe davam comida e dormida,
era como cumprindo uma obrigação fastidiosa. Os donos da casa evitavam se
aproximar dele, e o deixavam na sua sujeira, nunca tinham uma palavra boa para
ele. Olhavam-no sempre como a perguntar quando ele iria. E muitas vezes a
senhora que se comovera com sua história, contada na porta em voz soluçante e o
acolhera, mostrava evidentes sinais de arrependimento. Para Sem-Pernas elas o
acolhiam de remorso. Porque o Sem-Pernas achava que eles eram todos culpados da
situação de todas as crianças pobres. E odiava a todos, com um ódio profundo”.
(1936, p. 137)
Aspecto
teórico: predominância do trabalho assalariado
Citação
teórica: (SPOSITO)
“A
predominância do trabalho assalariado, e por outro lado o controle, cada vez
mais definitivo, da produção pelo capital, dão ao desenvolvimento capitalista
um novo rumo, através da ampliação do espectro de acumulação e reprodução do
capital”. (1994, p. 47)
Citação
literária: (AMADO)
“Vão para
a porta do sindicato. Entram homens: negros, mulatos, espanhóis e portugueses.
Veem quando João de Adão e outros estivadores saem entre vivas dos operários
das linhas de bonde. Eles viviam também. João Grande e Barandão, porque gostam
do doqueiro João de Adão. Pedro Bala não só por isso, como porque acha bonito o
espetáculo da greve, é como uma das mais belas aventuras dos Capitães da
Areia”. (1936, p. 279)
Aspecto
teórico: crescimento populacional x crescimento urbano
Citação
teórica: (SPOSITO)
“O rápido
crescimento populacional gerava uma procura por espaço, e por outro lado o
crescimento territorial das cidades no século XIII e primeira metade do século
XIX estava restrito a um determinado nível, além do que ficava impossível percorrer
a pé as distâncias entre os locais de moradia e trabalho. Ou seja, o
crescimento populacional não podia ser acompanhado em seu ritmo pelo
crescimento territorial”. (1994, p. 55)
Citação
literária: (AMADO)
“Parece
que há uma festa na cidade, mas uma festa diferente de todas. Passam grupos de
homens que conversam, os automóveis cortam as ruas conduzindo gente para o
trabalho, empregados no comércio riem, a Ladeira da Montanha está cheia de
gente que sobe e desce, os elevadores também estão parados. As ‘marinetes’ vão
entupidas, gente sobrando pelas portas. Os grupos de grevistas passam
silenciosos para a sede do sindicato, onde vão ouvir a leitura do manifesto dos
estivadores, que João de Adão conduz nas suas mãos grandes. Na porta do
sindicato grupos conversam, soldados montam guarda”. (1936, p. 278)
Aspecto
teórico: problemas urbanos como poluição, insalubridade, falta de
infra-estrutura
Citação
teórica: (SPOSITO)
“A falta
de coleta de lixo, de rede de água e esgoto, as ruas estreitas para a
circulação, a poluição de toda ordem, moradias apertadas, falta de espaço para
o lazer, enfim, insalubridade e feiúra eram problemas urbanos, na medida em que
se manifestavam de forma acentuada nas cidades, palco de transformações
econômicas, sociais e políticas. Contudo, é fundamental observar que estes
problemas constituíam manifestações claras da etapa pela qual o desenvolvimento
do modo de produção capitalista estava passando”. (1994, p. 58)
Citação
literária: (AMADO)
“Omolu
mandou a bexiga negra para a cidade. Mas lá em cima os homens ricos se
vacinaram, e Omolu era uma deusa das florestas da África, não sabia destas
coisas de vacina. E a varíola desceu para a cidade dos pobres e botou gente
doente, botou negro cheio de chaga em cima da cama. Então vinham os homens da
Saúde Pública, metiam os doentes num saco, levavam para o lazareto distante. As
mulheres ficavam chorando, porque sabiam que eles nunca mais voltariam.”. (1936,
p. 158)
Aspecto
teórico: discrepância de rendas e condições de vida
Citação
teórica: (SPOSITO)
“A
possibilidade de acesso à moradia, por exemplo, está subordinada ao nível
salarial. Ao discutirmos o desenvolvimento do capitalismo monopolista, vimos como
a troca desigual apóia-se no fato de que os trabalhadores de todo o mundo
capitalista recebem salários diferentes para produzir riquezas de mesmo valor.
De fato, nós sabemos que o trabalhador que recebe o piso salarial nacional, não
consegue sequer alimentar devidamente sua família, o que dizer de ter acesso a
uma moradia, pela compra ou aluguel do imóvel”. (1994, p. 73)
Citação
literária: (AMADO)
“Durante
anos [o trapiche] foi povoado exclusivamente pelos ratos que o atravessavam em
corridas brincalhonas, que roíam a madeira das portas monumentais, que o
habitavam como senhores exclusivos. Em certa época um cachorro vagabundo
procurou como refúgio contra o vento e contra a chuva. Na primeira noite não
dormiu, ocupado em despedaçar ratos que passavam na sua frente. Dormiu depois
algumas noites, ladrando à lua pela madrugada, pois grande parte do teto já
ruíra e os raios da lua penetravam livremente, iluminando o assoalho de tábuas
grossas. Mas aquele era um cachorro sem pouso certo e cedo partiu em busca de
outra pousada, o escuro de uma porta, o vão de uma ponte, o corpo quente de um
cadela. E os ratos voltaram a dominar até que os Capitães da Areia lançaram as
suas vistas para o casarão abandonado”. (1936, p. 30)
Aspecto
teórico: o Estado e a valorização dos espaços urbanos
Citação
teórica: (SPOSITO)
“A nível
de intra-urbano, o poder público escolhe para seus investimentos em bens e
serviços coletivos, exatamente os lugares da cidade onde estão os segmentos
populacionais de maior poder aquisitivo; ou que poderão ser vendidos e ocupados
por estes segmentos pois é preciso valorizar as áreas. Os lugares da pobreza,
os mais afastados, os mais densamente ocupados vão ficando no abandono...”.
(1994, p. 74)
Citação
literária: (AMADO)
“O
‘Grande Carrossel Japonês’ não era senão um pequeno carrossel nacional, que
vinha de uma triste peregrinação pelas paradas cidades do interior naqueles
meses de inverno, quando as chuvas são longas e o Natal está muito distante
ainda. De tão desbotada que estava a tinta, tinta que antigamente era azul e
vermelha e agora o azul era um branco sujo e o vermelho um quase cor-de-rosa, e
de tantos pedaços que faltavam em certos cavalos e em certos bancos, Nhôzinho
França resolvou não armá-lo numa das praças centrais da cidade e, sim, em
Itapagipe. Ali as famílias não são tão ricas, há muitas ruas só de operários e
as crianças pobres saberiam gostar do velho carrossel desbotado.”. (1936, p.
70)
Evidente que poderíamos, aqui, elencar muitos
outros aspectos que constituem o processo de urbanização e, em especial,
elementos característicos da cidade, e propor o diálogo com a obra de Amado.
Também poderíamos, como pode ser facilmente verificado, entrelaçar citações
teóricas e literárias de modo a manter um diálogo intertextual entre os dois
gêneros. Contudo, os exemplos expostos acima são mais que suficientes para
ilustrar que há muitos meios de se perceber e identificar a constituição da
cidade e do dinamismo presente no processo de urbanização, entre os quais a
partir de peças literárias.
3.
Considerações finais
Identificar e relacionar os vários elementos
constitutivos da cidade a partir do processo dinâmico que é a urbanização é,
além de necessário, condição primeira, a nosso ver, para se propor ações ou
projetos que tenham em seu bojo a busca de equilíbrio entre as várias forças e
interesses dos agentes da urbe. Não há como, em nossa opinião, pensar uma
cidade e agir sobre ela sem antes levar em consideração que por ela ser um
organismo vivo e dinâmico tudo que é feito, mexido, proposto etc. interfere de
modo drástico a vida de todos.
Também, em nosso ponto de vista, há que se ter em
mente que todos os agentes sociais (gestores públicos, moradores,
empreendedores, agente imobiliários, empreiteiras, comerciantes e empresários
etc...) precisam dialogar entre si de forma a buscar equacionar as
discrepâncias existentes na sociedade, seja do ponto de vista econômico, de
moradia, de saneamento básico, educação, saúde pública, ou sob qualquer outro
aspecto que seja de interesse social.
Não podemos nos esquecer, também, que o Estado é o
principal responsável para organizar a cidade e propor ações que viabilizem
essa equitatividade de relações, que privilegie os que menos são favorecidos
social e financeiramente etc.
5.
Bibliografia
SINGER,
Paul. Economia política da urbanização. São Paulo: Contexto,
1998.
SPOSITO,
Maria Encarnação Beltrão. Capitalismo e urbanização.São Paulo:
Contexto, 1994.
AMADO,
Jorge. Capitães da areia. São Paulo: Martins Editora, 1936.