*Educadora musical e regente de coral, formada pelo Instituto de Tatuí |
Olá, vamos conversar hoje sobre o Melisma, as tais “firulas”, comumente chamadas.
Depois de ouvir a turma do contra e a do a favor dos melismas no The Voice, gostaria de colocar meu ponto de vista e também esclarecer um pouco sobre o que é a técnica do melisma.
Em música, Melisma é a técnica de transformar a nota de uma sílaba de um texto enquanto ela está sendo cantada. Quando a música é cantada dessa forma a chamamos de melismática, diferente da música silábica onde cada sílaba do texto corresponde a uma única nota.
Segundo o Dicionário Grove de Música, “Melisma é um grupo de mais de cinco ou seis notas cantadas sobre uma única sílaba, especialmente no canto litúrgico. É uma característica de graduais, tratos, responsórios e aleluias no repertório gregoriano. No antigo canto medieval, um melisma podia ser inserido ou removido de um cântico, adquirindo com isso características melódicas estereotipadas. Os melismas gregorianos eram usados como cantus firmus (canto fixo) na polifonia (vozes múltiplas), do séc. XII ao XV; O estilo melismático foi usado com regularidade na música vocal polifônica a partir do séc. XIV.”
O Melisma apareceu pela primeira vez na forma escrita, ou seja, em registro, datando meados do século X (D.C.) em alguns gêneros do Canto Gregoriano, usados em certas secções da Missa. Na primeira escrita, antes da escrita musical que conhecemos, eram usados os neumas para esses registros. Observemos nas partituras abaixo que existem vários neumas (notas) para uma única sílaba.
A sequência de notas do “Glória”, de Edward S. Bames, um conhecido hino inglês “Angels We Have Heard On High”, contém uma das sequências mais melismáticas do repertório “popular” de música cristã, no “o” da palavra “Glória”:
A música das culturas antigas usava técnicas melismáticas para atingir um estado hipnótico no ouvinte, útil para ritos místicos de iniciação e cultos religiosos. Esta qualidade ainda é encontrada na música contemporânea hindu e muçulmana. Na música ocidental, o termo refere-se mais comumente ao Canto Gregoriano, como já dissemos, mas pode ser usado para descrever a música de qualquer gênero, incluindo o canto barroco e mais tarde o gospel.
Vamos ouvir um Kyrie Melismático (Canto Gregoriano):
Agora um barroco, no canto lírico:
Vamos ouvir a “Lascia Ch’io Pianga” de Handel em um trecho do filme Farinelli – Il Castrato
A partir do tempo 2:15’ podemos ouvir os melismas feitos sobre a melodia principal “tema” (que acontece na primeira parte da música).
Na música popular ocidental temos vários cantores que utilizam do melisma em suas interpretações. Podemos citar alguns: Aretha Franklin, Mariah Carey, Whitney Houston, Stevie Wonder, Beyoncé, JoJo, Sarah Vaughan, entre tantos outros.
Achei importante conversarmos um pouco sobre essa técnica, pois tenho ouvido muita crítica em relação a ela. Precisamos entender do que falamos para separar a técnica da questão cultural, histórica e da língua pátria.
A música brasileira é reconhecida mundialmente por sua beleza harmônica riquíssima e de melodia simples e enxuta. Quando o melisma é usado com exagero em nossa música, retira dela justamente a beleza de sua criação. Esse deve ser o tema da discussão.
Tivemos o The Voice Brasil e com ele acendeu novamente a discussão sobre o melisma (as firulas). Muitos criticaram a final, tendo em vista que o Sam foi o vencedor tendo ele utilizado dessa técnica em suas apresentações e excesso de falsete (aquela voz muito aguda masculina, mais suave, como uma voz feminina).
Bem, a questão é: o melisma não deve ser “malhado” como algo ruim, pois é uma técnica do canto e não foi criado para a música em inglês ou o canto contemporâneo. Ele origina-se, como já vimos, num período da história muito anterior à nossa discussão. Devemos entender musicalmente todas essas questões e não podemos colocar como fato algo de gosto pessoal.
Em meu restrito conhecimento musical acredito que nesse The Voice, dentre os finalistas que sobraram era mesmo do Sam Alves a vitória. Digo isso observando as questões técnicas apresentadas, o domínio da respiração, à beleza de seu falsete, entre outros atributos. Mesmo tendo ele desafinado em alguns momentos e, por conta da própria competição, sua respiração não foi controlada da forma como deveria, causando falta de apoio diafragmático, prejudicando seu desempenho ainda fico com ele.
Minha segunda colocada era a sanfoneira linda e de timbre sublime, mas que por conta de seu regionalismo em todas suas escolhas interpretativas deixou a desejar na questão versatilidade. Poderia ter escolhido coisas de nosso rico sudeste, de Minas com composições de nosso Milton Nascimento... Talvez por isso mesmo não tenha conseguido o primeiro lugar, apesar de seus atributos.
Para mim, ela era a única que poderia “roubar” o título do Sam, mas não conseguiu fazer com que seu talento sobressaísse à música. Também foi regionalista em suas escolhas, nos privando de observar sua versatilidade de interpretação. Uma pena!
Não podemos discutir isso como feio ou bonito, gosto ou não gosto, se é “Whitneyriano” ou não, precisamos entender as questões de talento e apresentação de forma técnica, independente de nossos gostos.
Eu também não aprecio exageros de melismas, apesar de ter a formação em canto lírico. Acredito que na música popular não cabe tantas “firulas”, especialmente a brasileira, mas não posso colocar isso como crivo para “caçar” defeitos em um menino que competiu com os demais dentro das regras propostas. Ele não infringiu regras, eu acredito. Então, está valendo!
Vamos ouvir o que um “firulento” brasileiro disse certa vez sobre críticas ao seu jeito de cantar:
Ed Mota:
O importante de tudo isso é olharmos para outro detalhe: O momento dentro do programa onde poderíamos mostrar que o Brasil tem compositores de qualidade e que tem outro tipo de música própria, bela, de harmonia rica e letra maravilhosa nos é tirado com a Ana Carolina mostrando sua nova composição: uma música de letra horrorosa e melodia cansativa. Se não bastasse a Ana Carolina, vai o Flausino do J. Quest com outra inédita sua de péssima qualidade também.
O que eu quero dizer com isso?
Quero dizer que nossa discussão musical deve estar pautada em um campo muito mais profundo que a malhação de melismas ou de cantores que fazem uso deles.
Onde estão nossos letristas fantásticos? Nossos intérpretes que nos causavam arrepios com seus timbres que praticamente encenavam as letras das canções?
Se vamos fazer “do jeito brasileiro” comecemos com um concurso com nome em português, ou pelo menos que nas regras de competição tenhamos como primordial a valorização da nossa terra.
Com melismas ou sem melismas, desejo a todos, e a mim mesma, o que vi em uma frase em uma rede social (vou adaptar): “Não devo desejar que 2014 seja um ano novo maravilhoso para mim. O que devo desejar é que eu consiga ser uma pessoa melhor para o ano que vai chegar e poder fazer de 2014 um ano muito melhor, através da minha vida.”
Que sejamos felizes em 2014 e com muita música, sempre!