Antonio Luceni
aluceni@hotmail.com
Tinha uma que
era feita de fubá com salsicha e couve. Depois descobri que algumas das
merendeiras subtraiam previamente, antes do intervalo começar, a maior parte
dos pedaços de salsichas e, os poucos que sobravam no angu aguado, eram
divididos meticulosamente entre os alunos; conchas cheias de sopa de fubá com
um ou dois, às vezes três, pedaços de salsichas.
Mas aquilo tudo
era uma espécie de maná caído do céu, banquete de deuses, já que a garapa ou
mesmo arroz com feijão e, eventualmente, ovo frito ou linguiça-cabo-de-rei
faziam parte do menu diário de nossas
casas. A molecada ia mesmo para a escola era para comer. Esse negócio de
estudar estava em segundo plano, para alguns, ou em terceiro ou quarto lugar
para a maioria.
Havia uma outra
– esta bastante disputada também – feita com macarrão parafuso e salsicha ou
carne moída. Não víamos a hora de bater o sinal para o intervalo para pegarmos
aquela fila longa, talvez só menor que a nossa fome, e pegarmos o prato lotado,
devorá-lo rapidamente para entrar de novo na fila e repetir duas ou três vezes
aquele ritual, a fim de matar a fome.
Durante a
semana apareciam outras variações: arroz doce, mingau de chocolate ou baunilha,
canja de galinha (que mais tinha osso do que carne, já que aquele esquema da
subtração mencionado antes também funcionava para a canja de galinha) e, às
vezes – acho que quando as cozinheiras estavam com preguiça de fazer comida –
nos eram servidos bolacha ou biscoito do tipo champagne com leite.
Era uma vida de
privações, bastante regrada. Tínhamos, sim, alimento em casa. Nossos pais eram
trabalhadores; a maioria iletrado, pessoas bastante simples, que viam na
escola, na educação uma saída possível para mudar o destino dos filhos. Escola
sempre foi, para nossos pais, o lugar da esperança. O lugar do sonho possível.
Para nós,
crianças sem luz (aluno é etimologicamente aquele que não tem luz), havia uma
luz no final do túnel que era conhecida como escola. Mas não era para um futuro
tão distante, não. Era o futuro da hora do almoço, do café da tarde, da
emergência vinda da barriga vazia, da panela batendo o fundo, com os grudados
de arroz quase queimado.
Falamos destas
coisas, hoje, nas rodas de famílias, nos almoços de finais de semana e rimos. Rimos
porque nos restou rir das nossas próprias limitações, das desgraças que não conseguiram
acabar conosco, do destino que nos queria ver na pior, mas que não pode ver sua
intenção consumada.
Rimos porque,
como disse o poeta, é melhor ser alegre do que ser triste. Rimos porque,
segundo pensadores e estudiosos, precisamos ter a capacidade de nos divertirmos
com nossas próprias limitações, com nossa própria miséria.
Mas nesse riso
também há um ranço de tristeza. Talvez – acho que no final é isso mesmo –
talvez seja tristeza travestida de alegria, já que não há nada de alegre ver
gente passando fome e se humilhando pra tomar uma sopa rala de fubá com
salsicha ou canja de galinha, com a galinha subtraída.
Antonio Luceni é mestre
em Letras e escritor. Membro e diretor da União Brasileira de Escritores – UBE.
Nossa Luceni!!! Vc também estudou no Jorge Corrêa??rsss.... era assim mesmo, e o que era pior na minha época: quem entrava na fila da sopa, sofria uma espécie de bulliyng - eram chamados de lavageiros pelos outros....um absurdo!!
ResponderExcluirParabéns novamente, vc como ninguém transformando o dia a dia em poesia!
Deise Machado
Ispriqui meu amigo: o certo é linguiça-cabo-de rei OU linguiça-cabo-de-reio?
ResponderExcluirReio é aquele pedaço de pau que tinha corda ou couro na ponta pra bater nos animais mas que às vezes os pais desciam no nosso lombo
Pois é, Deise... nossas angústias são as mesmas, só mudam de endereço... É preciso reagirmos quanto a isso.
ResponderExcluirObrigado pela participação.
Antonio Luceni
Meu caro Hamilton, saudações...
ResponderExcluirVocê está certo em suas observações. Certamente já provou da iguaria de uma linguiça-cabo-de-reio!!!
Tentei conservar no texto, entretanto, o modo como a chamávamos na infância, e como ainda o povo, de modo geral, a chama. Obrigado pela participação.
Antonio Luceni