domingo, 10 de julho de 2011

Sem título nem nada

Antonio Luceni
aluceni@hotmail.com

“A palavra tem que se parecer com a palavra. Atingi-la é meu primeiro dever para comigo. E a palavra não pode ser enfeitada e artisticamente vã, tem que ser apenas ela.”

(Tique-taque, tique-taque... há nesse ritmo um de fundo que acompanha todo o texto. É preciso que se diga isso.).
Para cada pedra alcançada à superfície, uma série de ilações deformes. Mas longas e dispersas ondulações da água, do mesmo modo suas divagações, mas ao contrário. Saiam-lhe às pressas, sem mesmo pedir licença: – Ai!, dizia das que lhe atingiam. – Espere-me, senhor, já estou indo! era o que se seguia.
Mas não tinha fundo. Mas não lhe atingiam inteiramente. Ora grande, ora pequena. Pra cada coisa uma senha. Pra cada senha uma chave. Que não era aberta, mas forçosamente retirada. Como se não houvesse o que fazer, somente seguir adiante.
– Mas estou atrasado. Era o que ele dizia.
Sempre estamos atrasados, na verdade. Porque o tempo não nos espera e, no meio do caminho, há flores, há paisagens, há frutas com que nos distrairmos. E tudo é tão bom. E tudo é tão bonito. E tudo é tão agradável.
– Não, não é por ali... Te disseram errado. Vai por cá e eu ali.
Queriam cortar-lhe a cabeça. Querem cortar-lhe a cabeça. Viver é um grande risco. Tem gente que tem medo de morrer. Não. Morrer não é arriscado. Viver é um grande risco. E olha só: a gente quer viver. Se possível, eternamente. Aqueles que chamam de loucos, talvez os mais equilibrados. O atalho lhes pertence. Vão a nossa frente. Chegam primeiro às mãos de Deus.
Quando estava grande havia coisas em seu entorno que não eram percebidas. Aliás, transparentes que eram, não tinham (não por si mesmas, mas pelo olhar que lhes era imposto) a menor importância. Não passavam de coisas no mundo. Mas tudo era diferente quando estava pequena. Pequeniníssima. Uma pena que se soltara virava algo próximo de asa-delta, as lágrimas eram rios que a podiam muito bem sufocar. E sempre tinham chaves no meio do caminho pra que fossem usadas entre uma e outra passagem.
(Você não se esqueceu do tique-taque, tique-taque...? Ele é importante pra percepção do texto).
Não há mais espaço no cômodo. Não há quase luz no cômodo. Há ratos, baratas, há buracos nos cômodos. As roupas estão rotas. O chá está gelado. O ar quase não há. Mas tinha que respirar naquele lugar. Temos que respirar em qualquer lugar. A vida só é possível reinventada. Não há outro modo. (Há, sim. Basta reinventar).
Aqueles bichos todos que um dia matei. Aquelas horas todas que não gastei. Os tempos de sono. A roupa mal lavada. A comida mal feita. Os beijos que não dei. As trepadas todas que gostaria de ter dado... Tudo me é gratuito agora. Mas com um furinho ali. (Por que, meu Deus? Eu gostava tanto dessa roupa...). Falta um pouco de açúcar... Não quero mais comer. Mais uma moeda, outra moeda, junta essa, quantas... Mas como carregar? O que fazer com tanto? Entregar-me por inteiro, despir-me de pudores, gozar... (Mas tem gente chegando... Tira essa mão daí. Não pode, não é possível, o que vão falar da gente?...).
(Tique-taque, tique-taque...)

“Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu morreria simbolicamente todos os dias.”

Antonio Luceni é mestre em Letras e escritor, Diretor da União Brasileira de Escritores – UBE.

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