sexta-feira, 11 de março de 2011

A CHUVA EM TELHADOS ANTIGOS

Em tempos de chuvas, resolvi dividir com vocês esse conto do escritor mineiro, Luiz Vilela, um dos meus favoritos (contista e conto!). Vejam se gostam... Há, inclusive, um curta metragem feito a partir dele, de Rafael Conde. Você poderá conferir um trecho no link: http://www.rafaelconde.art.br/filmografia.htm


Luiz Vilela



─ Que estranho... – ela disse. ─ Mas como você me descobriu aqui, Wilson?
─ Isso é um segredo; eu contratei um detetive particular...
Ela riu.
─ Você vê que não adianta esconder – disse ele; ─ mesmo que fosse a cidade mais longe do mundo, eu ainda te encontraria...
─ É – ela tornou a rir, ─ eu estou vendo...
Ele pegou o maço de cigarros. Ofereceu-lhe: ela agradeceu.
─ Você parou de fumar?... – ele estranhou.
─ Parei; o Olímpio não gosta.
─ Nem dentro de casa?
─ Não – ela respondeu, e se levantou: ─ deixe-me pegar um cinzeiro...
Ela foi pegar o cinzeiro em cima de um móvel, e ele aproveitou para observá-la com mais liberdade. Ela continuava bonita; mas, claro, não era mais aquela menina graciosa, de olhos melancólicos, que ele conhecera tempos atrás: era uma mulher, e tinha mesmo aquele ar negligente de uma mulher com dois anos de casada.
─ Detetive... – ela pôs o cinzeiro à sua frente e voltou a sentar-se. ─ Mas me conte, Wilson, quê que você fez durante esse tempo, por onde você andou...
─ Fiz muita coisa, Tânia; andei por muitos lugares; pintei muito...
─ Fiquei sabendo de uma exposição sua há pouco tempo.
─ Uma no Rio?
─ Acho que é. Eu li num jornal. Sei que o sujeito lá te fazia os maiores elogios, te chamava de um dos grandes talentos novos da pintura brasileira... Está vendo?
─ É, não posso me queixar quanto à minha carreira; tenho tido bons êxitos. Com os quadros já deu até para eu ir à Europa.
─ Eu soube mesmo que você foi. Que tal?...
─ Ótimo; gostei muito. Andei bastante por lá; fiquei uns tempos em Paris...
─ Paris... – ela disse.
─ Você lembra?...
Ela sacudiu a cabeça.
─ Quantos planos, hem?... – ele lembrou.
─ É... E nenhum deu certo... Bom, pelo menos, você foi a Paris...
─ Fui, mas não como estava naquele plano...
─ É assim mesmo: as coisas nunca são exatamente como a gente deseja.
Ela olhou na direção da janela, como se procurasse ver algo longe, na memória.
─ De vez em quando eu me lembrava lá de você – ele disse; - de você, de nossos planos... Era o último dia de aula, você lembra? O último dia de aula e seu último ano no colégio. Você disse: “Hoje é a última vez na vida que eu visto esse uniforme odiento.”
Ela riu: estava surpresa de vê-lo lembrar-se daquele detalhe que ela própria não fixara. E no entanto fora isso, exatamente, o que dissera.
─ Não foi o que você disse? – ele ainda perguntou, para confirmar.
─ Foi; exatamente... Puxa, como você foi guardar uma coisa dessas, Wilson? Eu nem lembrava mais.
─ Pois é... Você vê que eu não esqueço nada...
Ela baixou os olhos, como se houvesse, naquela frase, uma velada acusação.
─ Engraçado é sabe o quê? – ele continuou. ─ Que você estava achando bom não vestir o uniforme, e eu achando ruim.
─ Ruim? Você? Por quê?...
─ Porque foi com ele que eu te conheci, e então eu pensei que eu nunca mais te veria como naquele primeiro dia. E isso era como se... como se eu começasse a te perder...
Ela tornou a baixar os olhos.
─ Quê que você fez dele?
─ Dele? – ela ergueu os olhos de novo.
─ Do uniforme.
─ Ah; nem lembro mais, nem sei quê que eu fiz.
─ Claro – ele disse; - que bobagem...
Os dois riram sem-graça.
─ É... – ele disse; - muita água passou...
─ Por que você não me telefonou aquela vez, Wilson?
─ Aquela vez?
─ Eu te pedi que telefonasse, não pedi?
─ Pediu, você pediu...
─ Por que você não telefonou?
─ Não sei; eu fiquei na dúvida. Eu não sabia se você queria mesmo que eu telefonasse...
─ Sempre duvidando das coisas, hem?... – ela repreendeu com um terno sorriso.
─ Sempre, eu não digo; mas aquela vez... Foi uma fase difícil para mim, Tãnia; eu estava com uma porção de problemas, sem emprego... E o pior é que eu não sabia se continuava com a pintura, tinha dúvidas sobre minha vocação...
Ela o olhava, escutando com atenção.
─ Depois, com muita dificuldade, as coisas começaram a se estabilizar e aí eu fiquei mais seguro do que queria; fiquei mais tranquilo.
─ A gente nota isso.
─ Você nota?
─ Noto; noto que você ficou mais adulto.
─ Bom, mas, também, já era tempo, né?...
─ E eu? – ela perguntou. – Você acha que eu mudei?
─ Mudou; mudou muito. Você era uma menina àquela época; agora é uma mulher. Mas continua tão linda quanto antes.
Ela sorriu. Ficaram os dois por alguns segundos em silêncio.
─ Você toma um licor, Wilson? – ela perguntou.
─ Licor? De quê?
─ Murici.
─ Murici? Faz anos que eu não vejo murici.
─ Você gosta?
─ Muito.
─ Da fruta e do licor também?
─ Ambos os três.
Ela riu.
─ Vou trazer pra nós.
Levantou-se e desapareceu no corredor.
Ele chegou até a janela. A chuva, miúda, continuava a cair sobre as casas de telhados antigos. Um pouco mais longe estava o rio, de águas barrentas, com bananeiras à margem. O céu encoberto, o dia escuro, ninguém passando na rua. Era uma paisagem triste, e ela o fazia recordar-se de outras, antigas, que ele não sabia de quando nem de onde mas que estavam bem lá no fundo de sua memória, na parte mais solitária de seu ser. E ele então sentiu de novo o que tantas vezes sentira: aquele gosto antecipado de perda, a inutilidade dos esforços, o irremediável das coisas. Tudo já estava há muito tempo traçado, e qualquer tentativa de mudança terminava sempre em fracasso.
Ela chegou com o licor.
─ Estava olhando a chuva... – ele disse.
─ Há três dias que chove assim.
Os dois sentaram-se. Ele tomou um gole de licor.
─ Você que fez?
─ É.
─ Está ótimo; meus parabéns.
Ela sorriu.
No silêncio, ouviam o ruído apagado da chuva.
─ Quê que vocês fazem aqui, Tânia? Para se distrair...
─ Tem um cinema aí, é a única diversão. De vez em quando a gente também reúne a turma de engenheiros e faz uma festa; é uma turminha boa.
─ Você não sente falta daquela vida que a gente levava? Cinema, teatros, bares...
─ As vezes sinto, não vou dizer que não sinto; mas a gente se acostuma.
─ Eu acho que eu não me acostumaria.
─ Olha, quando chegamos aqui, no primeiro dia eu pensei: “Não aguento ficar nessa cidade nem mais um dia.” Agora já estou aqui há dois anos.
─ É... – ele disse, tomando mais um gole de licor.
─ É assim.
─ E em casa, quê que você faz para passar o tempo?
─ Adivinha...
─ Não sei...
─ Você vai rir.
─ O quê?
─ Tricô.
─ É?...
Ele de fato riu.
─ É, pelo que vejo, você está mesmo uma autêntica dona de casa, hem?
─ Tinha de ser, né?
─ Claro...
Tomou mais um gole.
─ E o Olímpio, ele fica a tarde inteira fora?
─ Fica.
─ Você não tem medo de aparecer algum tarado aqui? Ou essa cidade não tem tarado?
─ Tem a empregada.
─ A empregada é tarada?
─ Você, Wilson... Acho que você não mudou foi nada...
─ Ela fica com você, a empregada tarada?
Tornaram a rir.
─ Sabe, Tânia, eu não me conformo: você aqui nessa cidade, esse tipo de vida... Sinceramente, eu não acredito que você possa se acostumar com isso.
Ela sorriu apenas.
─ E algum herdeiro, já vem por aí?
─ Por enquanto, não...
Ficaram de novo calados.
Ele tomou mais um gole de licor.
Olhou as horas:
─ Cinco e cinco... O trem passa às seis...
Olhou pra ela:
─ Será que a gente se verá de novo, Tânia?...
Ela mexeu a cabeça, sem dizer nada.
─ Pode ser que a gente nunca mais se veja – ele disse.
Ele ficou olhando para o cálice de licor.
─ Você me perguntou o que eu vim fazer aqui; sabe, eu não vim fazer nada: eu vim aqui só para te ver. A saudade era muita. Eu queria te ver, queria falar com você, saber como você estava, ter a certeza de que você continuava viva...
Riu e olhou para ela:
─ Besta, né?...
Ela não disse nada; continuava olhando para o cálice de licor.
─ Você tem razão, Tânia; eu talvez não tenha mudado nada mesmo...
Foi até a janela e ficou algum tempo olhando a chuva. Começava a escurecer.
Tornou a olhar o relógio.
─ É, já é hora de eu ir andando...
Ela se levantou e veio também até a janela.
─ Você volta?... – ela perguntou, olhando para fora.
─ Você quer que eu volte?...
Ela mexeu a cabeça de modo indefinido.
─ Não sei, Wilson... Não sei...
Ele observou-a, depois ficou um instante olhando para fora.
Respirou mais forte:
─ Não – disse, - eu não voltarei.
Estava decidido.
Segurou de leve o rosto dela; lágrimas desciam mansamente.
─ Tiau, Tânia.
Ela não respondeu.
Viu-o ainda, pela janela, caminhando, sob a chuva, para a estação, que ficava no fim daquela mesma rua comprida. Ele ia a passos firmes, e nem uma vez se voltou para trás.

In: Contos, Luiz Vilela, Nankin, 2002.

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