domingo, 3 de julho de 2011

O MORTO


Antonio Luceni
aluceni@hotmail.com

Era um homem lindo. Um metro e oitenta, cabelos negros como a noite, olhos castanhos, de pele alva, mãos que podiam cerrar o mundo em suas palmas. Quando chegava, costumavam dizer, “arrasava quarteirão”.
É verdade que seu humor não era dos melhores. Daquelas criaturas temporãs, três por quatro seco e sarcástico. Mas, ao mesmo tempo, de uma graciosidade que encantava a todos.
Mulheres não lhe faltavam aos pés. O pecado solitário era o que mais praticavam e com ele, é claro, sempre em mente. Como jovem que era, vivia a vida intensamente e, é lógico, estas coisas só lhe “enchiam a bola”.
Nas rodas masculinas era gabado pelos colegas como namorador e até olhavam pra ele com certa inveja. Era fitado de modo meticuloso e seus gestos reproduzidos como equação matemática, talvez com a intenção de obterem o mesmo resultado em suas performances.
Os dias se passavam e parece mesmo que havia nascido praquilo. Vá! Era inteligente, sim. Talvez não uma inteligência excepcional, algo que o destacasse por demais dos outros. Mas eram inegáveis seus outros atributos. Ao menos o suficiente para não o considerarem somente um “corpinho belo” e uma cabeça vazia.
Foi certeiro. O atingiu no coração. Fatal. Ali mesmo. Nem deu tempo de socorrê-lo. O velório ficou cheio. Parecia até haver uma disputa de quem chorava mais. Em agudíssonos sopranos pareciam em coro, carpideiras, mas não de contrato, espontaneamente. As mal-amadas, as bem-amadas, as pretensamadas, as desalmadas, todas eram um dó só.
Mesmo que não deixassem perceber, os homens também enxugavam uma lágrima aqui e ali, já que o grande inspirador os havia deixado.
Como pudera aquilo acontecer? Tão jovem, meu Deus! Tanta coisa ainda pela frente para experenciar. Tanto amor ainda pra distribuir. E, ao mesmo tempo, quem iria desfrutar daquilo tudo eram os vermes. Que incoerente: algo tão refinado misturado e dado ao mais vil da terra.
E então ele veio com passos firmes, com olhar fixo, abrindo o grupo que se aglomerava ao entorno do esquife, tal qual uma serpente separando o capim sorrateiramente em busca de sua presa.
Parou diante do morto, fitou-lhe nos olhos como se a cobrar-lhe algo, tirou-lhe o véu, última barreira que ainda o impedia de agir e, para surpresa de todos, meteu-lhe um beijo. Quiseram impedir-lhe a ação, mas ele, agarrado ao defunto, sorveu-lhe o último fôlego que lhe sobrara à boca.
Em meio a pedaços de flores e gritarias, foi expulso do local como um cachorro açoitado e sob o sinal da cruz das muitas carolas que bordavam as alças da urna funerária com seus crucifixos.
Restabeleceu-se, arrumou o casaco amarrotado pelos socos e empurrões, limpou uma última gota de sangue que ainda saía pelo canto da boca e, com uma voz que somente ele podia escutar, disse a si mesmo:
- Não falei que eu te beijaria?

Antonio Luceni é mestre em Letras e escritor, Diretor da UBE (União Brasileira de Escritores).

3 comentários:

  1. ...gostei do final: Não falei que eu te beijaria?.....rs
    Ótimo Blog Antonio, Parabens!

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  2. Legal que você gostou, Gallan... continue acompanhando-o.

    Antonio

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  3. Caro e "queridásso" amigo,

    Ao ler este texto, pude comprovar o quanto acredito em sua veia literária e na sua capacidade de tecer uma escrita extremamente elegante e, ao mesmo tempo, clara e objetiva.
    Realmente, esse é um "dom" que você possui e sabe usar na medida certa!
    Poderia registrar aqui muitos elogios. Entretanto, nenhum deles conseguiria exprimir a profunda admiração pelo seu trabalho.
    Parabéns e continue nesse caminho ...
    Um forte abraço do amigo,
    Eder

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