domingo, 9 de janeiro de 2011

TRAVESSEIRO ENCHARCADO

Antonio Luceni

Todo início de ano é a mesma história: enchentes para todos os lados e, com elas, desabamentos, mortes, soterramentos... E não são somente físicos, não; metafóricos e psicológicos também.
Com as chuvas, desabam sonhos e inundam corações de tristeza.
Convivi por muitos anos com uma maldita goteira que ficava sobre minha cama, especificamente sobre meu travesseiro. Ela pingava e eu acordava. Desviava a cabeça do lugar ou dormia no lugar dos pés, torcendo para noite acabar. No outro dia trocava a telha, mas não adiantava: ela surgia novamente do nada.
Do nada, não. É que a casa era coberta por três ou quatro tipos de telhas romanas. Resultado de uma troca que meu pai fez na ocasião para cobrir a casa: um rádio velho por as tais telhas. Até hoje estão por lá.
As chuvas desabam e, com elas, encharcam sonhos. Quantas vezes eu, meus irmãos e meus pais saímos debaixo de chuva para trabalhar e estudar. Atravessávamos a rua Santo André inteira, desde a travessa Sérgio Cardoso até a avenida Prestes Maia, em Araçatuba, a pé, chutando sapos e com lama até as canelas. Trabalhávamos ensopados ou, pelo menos, molhados da cintura para baixo.
Certa vez, uma calha foi rompida na cozinha de casa em meio a um temporal e ficamos com um “chafariz” natural bem no meio da área de serviço, sem poder fazer nada, além de pegar um rodo e tentar expurgar ao máximo a água para fora.
Perdermos vários móveis entre sofás, guarda-roupas e colchões por conta das chuvas em excesso. A seca é ruim, é verdade. A poeira irrita a garganta, bota fama às donas de casa de relapsas, suja os colarinhos das camisas... Mas as águas do exagero são bem piores e, talvez, a maioria de vocês, amigos leitores, não sabe o que é isso. Acreditem: é algo triste.
Fico vendo e lendo essas notícias todas pela tevê, jornal e internet sobre os desabrigados e vitimados da chuva e retomo os dias ruins pelos quais passei na adolescência e parte da vida adulta. Cada vez que escuto sobre os encharcados das chuvas fico matutando num modo viável para poder ajudar.
Aquela goteira que me incomodava sobre meu travesseiro ainda me acompanha. Agora, batendo sobre minha consciência e, ao mesmo tempo, fazendo com que eu também me desperte com relação a esse tema – vítimas das chuvas – que, para muitos (sobretudo os que não sofrem com enchentes) não significa muita coisa.
Mais uma vez essa discussão passa pelas questões políticas e sociais. Há que se pensar nas vítimas das chuvas antes mesmo de que estas assim sejam conhecidas. Depois, não vale a pena chorar o travesseiro encharcado.
Quem tem coragem pra isso?

Antonio Luceni é escritor, Coordenador Regional da União Brasileira de Escritores – UBE.

2 comentários:

  1. Por que será que nossas histórias são tão parecidas,né?
    Aparentemente vivenciamos situações tão tristes mas por elas e só por elas é que certamente somos quem somos...
    É verdade sim que a goteira sempre nos incomodará para que não esqueçamos nunca a que viemos.
    Beijos.Te desejos chuvas de bençãos SEMPRE!!!

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  2. Caríssimo, impossível ficar alheio, difícil ficar insensível à tanta tragédia.
    Lá no blog tem um comentário sobre isso.
    Apareça
    http://elianeratier.blogspot.com

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