domingo, 17 de abril de 2011

DAS RAZÕES DO SER POÉTICO

Antonio Luceni
aluceni@hotmail.com

Nada disse, apenas ficou ali, feito estátua de sal. Mas pecado algum havida cometido. Ao menos não em seu entendimento. Ali estava, ali ficou. A sua presença incomodava alguns e a outros era como se não existisse. Mesmo sem falar, provocava reações diversas. Uns choravam, outros gritavam, alguns sorriam. Passavam acenando a cabeça como sinal de reprovação. Era curioso ver todo aquele movimento.
Feito estátua de sal, vez ou outra, recebia uma ave curiosa e passageira a encontrar-lhe repouso e suporte para as coçadas e manutenção diária das penas. Não se importava. De certo modo até achava graça naquilo. (Era de fato um uso usurpador, mas não de todo deliberado).
Lá pelas tantas da tarde, quando já o sol não mais a cobria com feixes de calor, esperava certo cortejo e beijos frescos do vento. Era um encontro desprovido de paixão, de laços mais íntimos que esboçassem qualquer comprometimento. Mas o compromisso diário parece que os ligava por um ritual que deveria ser cumprido dia a dia. Mesmo sem compromisso, lá e cá alimentavam certa ponta de ciúmes. (Por onde será que ele andava no tempo em que não estavam juntos?). Melhor não insistir nessa ideia. Vai que ele resolvesse não mais aparecer. E isso já havia acontecido em outros momentos.
Um ou outro metido a escrivinhador a apurrinhava com métricas fajutas, versos enfadonhos e toscos, temas redundantes e outras idiossincrasias burlescas de dá dó. O que mais de relevante (se é que se pode assim nomear) era o interesse do flerte, a tentativa do diálogo. Se de tudo não se pode ignorar, mas além disso também não sobra nada.
Certo dia, como se não bastasse a missiva flagelante, um bêbado – veja se pode isso –, um bêbado pôs-se a declamar versos e mais versos para a lua. Parecia uma dessas personagens folclóricas do anedotário popular. (E não é que a criatura chegou até me comover?!).
Gosto das coisas simples. Todo mundo acha que ser simples é algo simples. Mas não o é. Tente fazer um bolo simples, um chá simples, uma roupa simples, uma casa simples. Tente falar com palavras simples. Ser uma pessoa de gestos simples, de hábitos simples. Você verá o quão é difícil. (Parece que o mundo está fechado para as coisas simples).
No entanto, das coisas mais ricas e cobiçadas no mundo, muitas delas são bem simples: um sorriso de criança, um pôr do sol, cheiro de terra logo quando começa a chover, estourar jabuticaba na boca tirada diretamente do pé, procurar morangos maduros sob a vastidão verde de folhas, balançar numa rede, apertar bolinhas de plástico bolha, soprar penugens de mato no ar. (Ser simples e gostar das coisas simples não é para qualquer um).
É por isso que ela incomodava tanto. Era por isso que tanto foi esnobada e esquecida por alguns dos seus. Nunca suportaram a ideia de que ela era boa mesmo, de que tinha qualidades e que o que mais incomodava a todos era o simples fato de ela existir. E, como estátua de sal, não reclamava, não reivindicava seus direitos (por mais que fossem seus), não discutia o mérito da questão.
Fazia aquilo tudo porque gostava mesmo. O fato de ter ou não reconhecimento, o fato de ser ou não aclamada, não importava. O seu principal prêmio era a oportunidade de com todos conviver. Aprender com pássaros e homens. Aprender com a noite e com o dia. Aprender com sábios e vagabundos. Tudo lhe causava profundo interesse. Das coisas mais banais às consideradas muitíssimas importantes, eram de igual modo aproveitadas.
Isso tudo para alguém que até parecia uma estátua de sal.

Antonio Luceni é mestre em Letras e escritor. Diretor da União Brasileira de Escritores – UBE.

2 comentários:

  1. Foi um prazer estar aqui e desfrutar de tanta criatividade. São escritos dignos de um verdadeiro mestre. Parabéns, escritor!

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  2. Que bom que você gostou, Simone... continue acompanhando o blog.

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