domingo, 3 de abril de 2011

A guardiã de livros

Antonio Luceni
aluceni@hotmail.com

Como afirmou Cecília Meireles, “palavras, que estranha potência, a vossa”. E não é assim?
A partir de um artigo que escrevi na semana passada alcancei uma alma. (Terá sido eu ou foram as palavras?). Melhor dizendo, as palavras a alcançaram. Sim, porque não é qualquer um que tem o poder de tocar na alma da gente, não. Acabem-se logo as pretensões dos pretensiosos de plantão. Nossa alma é tocada por poucos. Definitivamente: as palavras a tocaram.
Mas já a vinham tocando há tempos... E por meio delas D. Dirce, a professora Dirce, tocou a muitos. Não disse sobre quem estava falando, não é mesmo? A alma tocada, aquela de umas linhas acima, era a de D. Dirce. “Fiquei sensibilizada a partir do que escreveu, por isso resolvi delegar-lhe essa função”. E que função! A de dar continuidade à sua missão com livros, que a acompanham há décadas.
Ela que fazia aniversário no dia da visita e eu que estava ganhando o presente. Coleções inteiras de Jorge Amado, Monteiro Lobato, Machado de Assis... obras com edições esgotadas, encadernações que já não mais são feitas pelas editoras, seja porque são caras (capas de couro, com detalhes em relevo e de edições raras) ou porque não se tem mais o cuidado que tinham  com os livros da antiga.
Só para citar uma dessas raridades, “Formação da Literatura Brasileira”, do Antonio Candido, quatro volumes, da Martins Fontes Editôra (com acento circunflexo no “o”, mesmo), de 1959. (Ele já existia 18 anos antes de eu nascer e nem sabia que depois de 50 anos iríamos nos encontrar!).
Cada livro que eu olhava, em cada coleção que eu mexia, os olhos de D. Dirce me seguiam. Como um fiel escudeiro, um verdadeiro guardião, ela não pestanejava e cada movimento era seguido e registrado como uma das mais eficientes e modernas câmeras.
“Fique tranquila, D. Dirce, eles ficarão em boas mãos”. Dizia isso na tentativa de tranquilizá-la um pouco. E emendava em seguida: “Sei o que a senhora está sentido, já que alimento o mesmo sentimento pelos meus livros”. Ela parecia conformar-se mais um pouco. (Mas que nada, quem fica ligado nessa coisa de livro nunca mais se desliga. É um vício bom, uma coisa meio louca, mas que faz bem pra gente).
Agora a responsabilidade é passada para mim. Boa parte do “tesouro” que ela vigiou e que, com maestria, distribuiu entre alunos, familiares e amigos, está sob meus cuidados. Tal qual a guardiã Dirce, preciso cuidar deles, fazer com que suas páginas não sejam esquecidas no tempo ou que se tornem comida para traças e cupins. É preciso abri-las, distribuí-las para aqueles que têm “fome”, que precisam de uma, duas, muitas palavras amigas. É preciso que esses livros corram de mão em mão, mexendo com a visão, coração e alma das pessoas (já disse que poucas coisas tocam a alma das pessoas? Sim, uma delas é a literatura).
Então que seja assim, D. Dirce. Prossigo com a missão da senhora no espalhar das letras pelos corações dos homens. Quem sabe não brotem delas grandes médicos, advogados, arquitetos, professores... pessoas mais humanas e felizes pelo simples fato de terem tido acesso aos livros?

Antonio Luceni é mestre em Letras e escritor, Diretor da União Brasileira de Escritores – UBE.


RESPOSTA DE DONA DIRCE À ESTE CRONISTA:



Luceni,

Fiquei deveras sensibilizada com suas palavras.
De fato, desfazer-se de “livros” não é tarefa fácil de se cumprir. Todavia, eu não me sentia intranquila à medida que os livros eram postos à parte. Foi um ato por demais consciente e eu o fiz com satisfação.
            Senti-me feliz, imensamente feliz por saber que o “herdeiro” desses volumes é pessoa idônea, dinâmica, capaz, que poderá transmitir a muitos jovens o seu cabedal de conhecimentos, difundindo-o entre os interessados em obter grandes e sábias conquistas através deles.
            Orientada por minha filha, que tem por você uma grande admiração, eu consegui, sabiamente, encontrar o “destinatário” certo para desempenhar essa missão.
            É raro encontrarmos pessoas interessadas em alimentar a alma ansiosa por enriquecer-se com conhecimentos variados.
            Atualmente, com descobertas tecnológicas avançadas, os jovens encontram maior interesse em jogos, “baladas”, internet e uma infinidade de games que os computadores oferecem a todo instante, do que na leitura de um livro.
            Com prazer, as “palavras” puderam tocar-me fundo, pensando no que disse o poeta Castro Alves no poema O livro e a América:
Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
É germe — que faz a palma,
É chuva — que faz o mar.”
Finalizando, quero aqui expressar meus agradecimentos pela gentileza de seus gestos no pouco tempo em que tive o prazer de conhecê-lo. Primeiramente, quando, ao vir me visitar, entregou-me aquelas rosas perfumadas e belas com um maravilhoso cartão que alegraram ainda mais o dia em que eu tinha o privilégio de completar oitenta e dois anos muito bem vividos Graças a Deus.
Num segundo momento, como mais uma surpresa encantadora, recebi o texto que você havia publicado em seu blog e também no jornal sobre esse nosso encontro.
Tais atos revelam nobreza e muita delicadeza que só as possuem pessoas privilegiadas e sensíveis como você.
E é por esse motivo que não marco a minha idade pelos anos que se passam, mas pelos amigos que consegui conquistar.
Obrigada, Luceni.

Dirce Jodas Gardel Tafner

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