quarta-feira, 27 de abril de 2011

ENTREVISTA COM WILMA GOTTARDI GUIMARÃES

Por Antonio Luceni


Numa tarde amena, sob um vento agradável e ao som de pássaros e um mensageiro do vento é que aconteceu esta entrevista com a artista plástica Wilma Gottardi Guimarães.
Carismática do jeito que é, já nos recebeu com um largo sorriso e uma tala no braço, resultado de uma queda em sua casa. De energia contagiante, provocou, refletiu, sorriu e compartilhou de muitas coisas de sua vida pessoal, profissional, religiosa, de ser humano.
Com formação em Biologia pela Faculdade de Ciências e Letras de São José de Rio Preto, e aposentada como professora nesta área, só depois dos 50 anos dedicou-se às artes plásticas, matriculando-se num curso de desenho e pintura no Ateliê Fare Arte, de Márcia Porto, em Araçatuba/SP.
De lá para cá, nunca mais parou. Pintura em tela, painéis e azulejos, escultura, colagem, mosaico são algumas das técnicas utilizadas por essa artista que é só sensibilidade em pessoa.
De sua casa na fazenda pelos arredores de Araçatuba, concedeu a entrevista que se segue.

Antonio Luceni: Você tem um percurso de vida bastante rico nos mais variados temas. O que ficou para você dessa experiência toda?
Wilma Gottardi: A paixão. Não sei fazer nada se não estiver apaixonada. Tudo que faço é movido pelo meu desejo intenso de me relacionar com aquilo tudo. Se não houver paixão, desejo e vontade intensa de realizar algo, não funciona comigo.

Antonio Luceni: E quais são as paixões da sua vida?
Wilma Gottardi: São muitas... minha família, meus amigos, as artes de modo geral. Sou uma apaixonada pelas artes, é genético, biológico. Não saberia viver se não fosse por meio da linguagem artística. É no mundo possível das artes que eu me encontro, que eu consigo me expressar, dizer o que penso e sinto, que eu me completo. E o ensino também. É muito prazeroso pra mim ensinar, seja o que for. Quando me vejo já estou procurando ajudar as pessoas por meio do aprendizado. E quando ensino, também aprendo muito. É sempre uma troca. A vida é cheia de aprendizados, não é mesmo? (risos)

Antonio Luceni: Você desenvolveu trabalhos com diferentes técnicas. Conte um pouquinho desse processo pra gente.
Wilma Gottardi: Gosto, como disse, de me envolver com arte. Não importa se pintando, colando, desenhando, esculpindo... Quando entro numa fase mergulho intensamente nela. Então, tenho muitas coisas feitas e que podem ser vistas aqui por casa (mostra uma série de trabalhos expostos nas paredes e bancadas onde acontecia a entrevista), nos jardins, em outros espaços que temos no Mato Grosso e até fora do estado. Ultimamente estava muito envolvida com pinturas em azulejos. Fiz muitos trabalhos. Depois mandei emoldurá-los com molduras de cimento porque não os queria estáticos. Assim como os quadros, queria locomovê-los, transportá-los para onde desejasse, para uma exposição etc. Mas tenho trabalhos de todos os tipos: colagens... Fiz muitas colagens e ensinei professores e alunos de escolas públicas a fazerem trabalhos com colagens no intuito de dizer que a arte é possível com aquilo que a gente tem, que não precisa de materiais nobres ou inacessíveis para se fazer arte. É só usar a criatividade, ter boa vontade e pronto, as coisas acontecem.

Um dos trabalhos da artista expostos na parede. Pintura sobre azulejos.

Antonio Luceni: Você foi proprietária de um antiquário por mais de dez anos, em Araçatuba. Conte-nos um pouco dessa experiência.
Wilma Gottardi: Ah, foi uma época maravilhosa da minha vida. Como fui feliz e o quanto cresci nesse período. Foram doze anos de intenso aprendizado. Eu e uma amiga resolvemos abri-lo e a primeira coisa que fizemos foi pedir orientação para um professor de história da arte do MASP (Museu de Arte de São Paulo). A primeira ordem que ele nos deu foi comprar uma lista imensa de livros e estudar cada coisa de um antiquário: cristais, mobílias, lustres etc... O dinheiro que o Raul (marido dela) havia me dado para comprar peças foi todo gasto com livros. Mas foi muito bom pra gente aquilo. Li muito antes de comprar as primeiras peças. Foi muito bom me apropriar da história das peças, de suas origens, de suas composições etc. Depois, as viagens foram um capítulo à parte. Cada peça, cada móvel, cada objeto era escolhido a dedo por mim e minha sócia. Muitas peças eram encomendadas por clientes antes mesmo de viajarmos. Foi um tempo bom que não volta mais.

Antonio Luceni: E por que acabou?
Wilma Gottardi: Porque tudo acaba, não é mesmo? (Risos). Nada dura para sempre. Outros contextos foram surgindo, muitos clientes começaram a enfocar e a adquirir peças de origem duvidosa. Acabou... E também eu nunca fui uma boa comerciante, sabe... Muita coisa eu dava, vendia por um valor inferior ao que valia. Aquilo tudo para mim, o contato com os clientes, as discussões sobre as peças, suas histórias etc., tudo isso me interessava mais do que o dinheiro em si. Veja que, por conta desse meu ofício, tive oportunidade de conhecer a Nice, que também era antiquarista, ex-mulher do Roberto Carlos. Demos boas risadas juntas... Nunca fui apegada ao dinheiro. Ele sempre funcionou em minha vida como um elemento secundário. Até hoje é assim. Eu sou uma pessoa de hábitos simples, de uma vida simples. Gosto das coisas simples da vida.

Antonio Luceni: As artes plásticas foram surgindo em sua vida aos poucos, não é mesmo? Conte-nos como tudo aconteceu.
Wilma Gottardi: Na verdade desde novinha sentia atração pelo desenho e pela pintura. Estudava num colégio de freiras, em São Paulo, eu com meus 9, 10 anos já desenhava muito bem. A ponto de as irmãs se entusiasmarem com meus trabalhos. Acabei fazendo graduação em Biologia. Mas, mesmo como professora de Biologia, exercia meu ofício, ainda que amador, de artista. Adorava desenhar as plantas, os esquemas biológicos na lousa. Eram desenhos muito bons. Os colegas que entravam depois de mim na sala de aula, não queriam apagar a lousa porque tinham pena de sumir com os desenhos. Mas isso tudo ficou estacionado em mim até que, depois de aposentada, me matriculei num curso de pintura da Márcia Porto e me dediquei a esta área que amo tanto, que são as artes plásticas. Lembro-me que em meu primeiro desenho a Márcia me ofereceu dois lápis apenas: um preto e um na cor sépia. Depois que fiz meu desenho, ela quase não acreditou no que eu o tinha feito. Ficou um resultado muito bom para uma iniciante. (risos)

Primeiro desenho feito a lápis pela artista, em 1996. Ateliê Fare Arte.

Antonio Luceni: O que você espera com o seu trabalho de artista?
Wilma Gottardi: Que ele seja acessível. Quero que o que eu faço seja compreendido e assimilado por todos. A pessoa mais simples precisa ter acesso ao meu trabalho. Gosto que o povo tenha acesso ao que produzo.

Antonio Luceni: Existe algum artista que chama mais sua atenção, que a emocione mais?
Wilma Gottardi: São muitos... Mas acho que se tivesse que eleger um, seria a Frida Khalo. Pela espontaneidade do trabalho dela, pela verdade de sentimentos que há em sua obra. Veja que ela conseguiu se despir de todo formalismo, de toda casca e se mostrou, até de certa forma, como alguém ingênua, sem maiores pretensões. Gosto da arte dela porque é pura emoção, sentimento. E eu sou um pouco assim. Gosto que meu trabalho seja assim: cheio de emoção e sentimento. Uma obra dela de que eu gosto muito é “As duas Fridas”. Mas também fiquei impactada quando entrei em contato, pela primeira vez, com o trabalho de Picasso. Ver dois cômodos inteiros onde foi a casa dele, em Barcelona, com rascunhos da famosa Paloma foi demais pra mim. Aí a gente para pra pensar que o trabalho do artista é transpiração e não inspiração, como dizem.

As duas Fridas - Frida Khalo - Óleo s/ tela - 219 x 220 cm, 1939.

Antonio Luceni: Das muitas viagens que fez pelo mundo, conte-nos algum fato pitoresco ou alguma gafe por que tenha passado.
Wilma Gottardi: (Risos) Ah, foram muitas... E quem não as teve, não é mesmo? Mais uma que me marcou muito, foi uma experiência em Israel. Conforme andávamos pelos lugares santos e turísticos daquele país via palestinos queimando pneus no meio da rua, atirando pedras em nosso ônibus, mas nada muito fora do normal ou que nos causasse pânico. Acontece que num dos dias do passeio, num sábado, ficamos trancados no hotel em Israel porque lá eles não fazem nada no sábado. Acontece que acabamos descobrindo que as lojas palestinas ficavam abertas e vi ali uma ótima chance pra compras para o antiquário. Saí, fiz as compras e achei que tudo estava bem. Quando chegamos no aeroporto, fui cercada por guardas que me isolaram de todo o grupo e começaram a me hostilizar com palavras duras.  Pediram pra que eu mostrasse tudo que levava na mala, não deixavam com que os guias me ajudassem... foi uma coisa horrível. Até hoje eu não sei por que fui investigada, por que me barraram no aeroporto. Eu só sei que o voo foi interrompido e, por sorte, eu pude ir nele. Se não, sei lá, acho que estaria lá até hoje. (risos)

Antonio Luceni: E um episódio bacana?
Wilma Gottardi: Barcelona... A Igreja da Sagrada Família, Gaudi... Eu não conhecia Gaudi à época. Ao menos o Gaudi que vi ali, com aquelas construções todas, com a imponência que tem o trabalho dele. O Parque Guell, com todo aquele colorido, com aqueles mosaicos todos... Aquilo me marcou muito. Mas também uma viagem louca para Ilha da Madeira, em Portugal. Depois que pousamos lá, numa aventura maluca e uma manobra de mestre do piloto, nos deparamos com um verdadeiro cemitério de aviões. O lugar era perigosíssimo para aterrissar. Mas depois que estávamos em solo, foi uma beleza, que lugar lindo. A temperatura média o ano todo é de 21, 22 graus. Uma estufa natural, em cima de uma região montanhosa e com cores que nunca vi antes na minha vida. Não dá para dizer que o roxo de lá é o mesmo daqui. São outros tons, outras nuanças... tudo muito lindo.

Igreja da Sagrada Família - Gaudi - Barcelona.

Parque Guell - Gaudi - Barcelona.

Antonio Luceni: Você conseguiria eleger os principais momentos de sua vida? Quais datas lhe são mais significativas?
Wilma Gottardi: Todas, Antonio. Cada dia da minha vida, da minha relação com o outro, com  minha família é um dia especial. Eleger algum e desprezar os outros seria uma crueldade. Portanto, todos os dias são importantes para mim. Vivo cada um deles intensamente.

Antonio Luceni: Além de pintar e desenhar o que gosta de fazer?
Wilma Gottardi: Ler. Adoro ler, de tudo gosto de ler. Livros técnicos, pesquisas, literatura, história, tudo me interessa porque eu gosto de aprender. Não paro de ler. Mas um livro especialmente, que leio todas as noites é a Bíblia. Não consigo me imaginar, hoje, sem essa relação com Deus, com a palavra dele.

Antonio Luceni: Você acha que a gente precisa de religião?
Wilma Gottardi: Acho. Não consigo me imaginar sem uma relação com Deus, com a palavra dele, com a comunhão com as pessoas. Eu conheço tanta coisa nesse mundo e, ao mesmo tempo, é tão curto o espaço de tempo para a gente conhecer as coisas. Então, eu preciso dessa relação com Deus pra Ele me mostrar muito mais. Há muito mais coisas no universo pra eu conhecer e eu quero conhecer junto a Ele. Afinal, para que Ele criou isso tudo se não fosse pra gente conhecer? (risos)

Antonio Luceni: O que você mais valoriza no ser humano?
Wilma Gottardi: A humildade. Sem humildade acredito que a gente não é ninguém.

Antonio Luceni: E o que menos aprecia?
Wilma Gottardi: A traição e a mentira.

Antonio Luceni: Se você tivesse que deixar algum ensinamento, qual seria?
Wilma Gottardi: Amar a Deus sobre todas as coisas e ter muito, mas muito amor pelo próximo. Só isso já bastaria para uma vida possível.

Com a artista, defronte a um de seus painéis.

domingo, 24 de abril de 2011

UM MAR PARA RESPIRAR

Antonio Luceni
aluceni@hotmail.com


Ah, que pena! O feriadão acabou!!
Um parafuso solto aqui, e voltou pro lugar. Uma lâmpada queimada ali, e pronto! trocadinha da silva! Reparo no jardim, cachorro pra passear, pernas pro ar... É, o legal de feriado longo é que a gente coloca tudo pra funcionar novamente. Até dá tempo de curtir uma preguicinha, não é mesmo?!
Mas como operários da Pátria, proletários do Capitalismo, zumbis da urbe, estamos de volta pro trampo. E trate de suar a camisa e mostrar serviço pro patrão. Ele deve estar tinindo de raiva desse tempo todo em que você ficou no bem-bom.
Mário Quintana (acho que foi ele) sugeriu uma “janela” pra gente respirar. Acho pouco. Preciso de um mar pra respirar. Um mar de palavras, um mar de ideias, um mar cheio de prosa e verso para me inspirar. Como diria o outro, navegar é preciso. Mas viver também, ora pois...
E nesse mar de respiro a gente vai pescando palavras: umas belas, mas também perigosas, como águas vivas (verdade, ética, justiça, liberdade...); outras saborosas e, ao mesmo tempo, exóticas, como lagosta e camarão (equidade, reciprocidade, carinho, desejo...); algumas são ferozes, agressivas, verdadeiros tubarões (corrupção, roubalheira, propina, mensalão...); há as que são tão costumeiras que, feito sardinha, já não surpreendem mais, só que precisam ser revistas, revisitadas, repaginadas (amizade, amor, paz, religião...).
E assim a gente vai navegando num mar-sem-fim-palavrar. Nesse mar há também os perigos iminentes: monstros marinhos, tempestades avassaladoras, piratas traiçoeiros, rochas e icebergs. Mas é preciso navegar. Enfrentar tudo isso e ir selecionando cada situação e depositando-a em baús imaginários que, ao longo da vida, serão abertos feito verdadeiros tesouros. E pra quê? Pra gente respirar.
Coleciono meus baús de palavras. Uns, em forma de livros (já são alguns publicados). Outros, em forma de artigos técnicos e estéticos (em jornais e revistas). Há um baú virtual (na verdade são três, quatro...), que chamamos de blog, o qual deposito vernáculos modernosos. Agora, a partir desta semana, passo a escrever também, ou seja, a abrir mais um baú, no site www.luizberto.com, no Jornal da Besta Fubana. Nosso encontro acontecerá, assim como aqui no Liberal, todas às terças-feiras. Vejam lá e confiram.
Um mar para respirar. Um mar de palavras: em livros, em revistas, em jornais, na internet. É preciso ter um horizonte à frente pra que a gente tome fôlego e faça da vida um lugar possível de se viver. Meu jeito de respirar é por meio das palavras. O lugar do meu encontro com a dor, a alegria, a saudade, a paixão, o belo, o grotesco, o desprezível, o sensível, com meus acertos, com meus erros, com a minha ilusão e utopia, com a minha razão e verdade...
Quando estou nesse mar de palavras não há motivos pra não respirar. Estão todas ali, à minha frente (e ao lado, e embaixo, e acima de mim). Cada uma delas, travestidas de paisagem, de maré, de vela, de proa, de peixe, de água, de vento... Às vezes tocam a minha pele com uma delicadeza tal que chegam a me confundir com nuvens... Outra hora são tão ásperas que parecem escamas cortantes.
Mas todas são importantes, mesmo as que me fazem chorar. Preciso de cada uma delas pra sobreviver, pra dizer quem eu sou, ou mesmo para simular quem gostaria de ser. Todas são importantes e cada uma delas tem seu lugar nos meus baús de memórias.

Antonio Luceni é mestre em Letras e escritor, Diretor da União Brasileira de Escritores – UBE.

domingo, 17 de abril de 2011

DAS RAZÕES DO SER POÉTICO

Antonio Luceni
aluceni@hotmail.com

Nada disse, apenas ficou ali, feito estátua de sal. Mas pecado algum havida cometido. Ao menos não em seu entendimento. Ali estava, ali ficou. A sua presença incomodava alguns e a outros era como se não existisse. Mesmo sem falar, provocava reações diversas. Uns choravam, outros gritavam, alguns sorriam. Passavam acenando a cabeça como sinal de reprovação. Era curioso ver todo aquele movimento.
Feito estátua de sal, vez ou outra, recebia uma ave curiosa e passageira a encontrar-lhe repouso e suporte para as coçadas e manutenção diária das penas. Não se importava. De certo modo até achava graça naquilo. (Era de fato um uso usurpador, mas não de todo deliberado).
Lá pelas tantas da tarde, quando já o sol não mais a cobria com feixes de calor, esperava certo cortejo e beijos frescos do vento. Era um encontro desprovido de paixão, de laços mais íntimos que esboçassem qualquer comprometimento. Mas o compromisso diário parece que os ligava por um ritual que deveria ser cumprido dia a dia. Mesmo sem compromisso, lá e cá alimentavam certa ponta de ciúmes. (Por onde será que ele andava no tempo em que não estavam juntos?). Melhor não insistir nessa ideia. Vai que ele resolvesse não mais aparecer. E isso já havia acontecido em outros momentos.
Um ou outro metido a escrivinhador a apurrinhava com métricas fajutas, versos enfadonhos e toscos, temas redundantes e outras idiossincrasias burlescas de dá dó. O que mais de relevante (se é que se pode assim nomear) era o interesse do flerte, a tentativa do diálogo. Se de tudo não se pode ignorar, mas além disso também não sobra nada.
Certo dia, como se não bastasse a missiva flagelante, um bêbado – veja se pode isso –, um bêbado pôs-se a declamar versos e mais versos para a lua. Parecia uma dessas personagens folclóricas do anedotário popular. (E não é que a criatura chegou até me comover?!).
Gosto das coisas simples. Todo mundo acha que ser simples é algo simples. Mas não o é. Tente fazer um bolo simples, um chá simples, uma roupa simples, uma casa simples. Tente falar com palavras simples. Ser uma pessoa de gestos simples, de hábitos simples. Você verá o quão é difícil. (Parece que o mundo está fechado para as coisas simples).
No entanto, das coisas mais ricas e cobiçadas no mundo, muitas delas são bem simples: um sorriso de criança, um pôr do sol, cheiro de terra logo quando começa a chover, estourar jabuticaba na boca tirada diretamente do pé, procurar morangos maduros sob a vastidão verde de folhas, balançar numa rede, apertar bolinhas de plástico bolha, soprar penugens de mato no ar. (Ser simples e gostar das coisas simples não é para qualquer um).
É por isso que ela incomodava tanto. Era por isso que tanto foi esnobada e esquecida por alguns dos seus. Nunca suportaram a ideia de que ela era boa mesmo, de que tinha qualidades e que o que mais incomodava a todos era o simples fato de ela existir. E, como estátua de sal, não reclamava, não reivindicava seus direitos (por mais que fossem seus), não discutia o mérito da questão.
Fazia aquilo tudo porque gostava mesmo. O fato de ter ou não reconhecimento, o fato de ser ou não aclamada, não importava. O seu principal prêmio era a oportunidade de com todos conviver. Aprender com pássaros e homens. Aprender com a noite e com o dia. Aprender com sábios e vagabundos. Tudo lhe causava profundo interesse. Das coisas mais banais às consideradas muitíssimas importantes, eram de igual modo aproveitadas.
Isso tudo para alguém que até parecia uma estátua de sal.

Antonio Luceni é mestre em Letras e escritor. Diretor da União Brasileira de Escritores – UBE.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Como se soubesse de onde vinha, simplesmente veio.


Poema: Antonio Luceni
Ilustração: Wemerson Dhamaceno
(Sem título, técnica mista s/ papel, 21 x 29,7 cm, 2008)


Como se soubesse de onde vinha, simplesmente veio.


Em projeção, no infinito, veio.
Não disse nada, não anunciou nada.
Nada no nada. Veio.
Em sutis movimentos
Em caladas horas. Veio.
Subiu a serra
Subiu os vales
Subiu...
Mas havia serra?
Tinha vales?
Veio.
No começo, quase-semente
(Afinal, no princípio sempre é assim: tudo é semente)
Depois, uma raiz que se erguia
Insinuando copa
(Não tinha copa, não tinha nada)
Quase uma espinha dorsal
(Era uma espinha dorsal)
Para segurar tudo aquilo.
Mas que tudo aquilo?
Não era nada?
Nada no nada?
Mas até mesmo no nada
há algo
Afinal, tudo antes de existir não era o nada?


O que antes apenas se esboçava
foi adquirindo corpo,
foi adquirindo cor
foi
veio
do nada.
O que antes
silêncio
O que antes
esboço
O que antes
insinuação
Veio
E se fez
Folha
Flor
Fruto
tornou-se carne
palatável
em coração
em cor.
E, então,
todos o viram,
todos o aplaudiram,
e o ficaram paparicando.
Agora,
que era coisa
Agora,
que era cor
Agora,
que poderiam comê-lo.
Mas antes?
No nada?
Quando ainda esboço?
Quando ainda quase?

Ora, abutres de plantão
Quebrem o preconceito
E acreditem.
Ainda que seja no nada.

domingo, 10 de abril de 2011

VOSSA EXCELÊNCIA, VIOLÊNCIA

Antonio Luceni
aluceni@hotmail.com

Fiquei pensando esta semana sobre o que escreveria. Na verdade a gente pode escrever tanta coisa, não é mesmo? Mas sempre busco refletir sobre as coisas do meu dia a dia, as que me trazem algum aprendizado, que modificam meu olhar.
Estava propenso refletir um pouco com você, leitor, sobre as infelizes declarações (para não agir como ele, falando sem pensar) do deputado federal Jair Bolsonaro (PP). Primeiro ele afirmou no programa CQC que não admitiria um filho se casar com uma negra porque isso era “promiscuidade”.
Depois, o “tão corajoso” Bolsonaro, desdisse o que disse com medo de processo (e de até perder o mandato) por racismo e saiu atirando contra os homossexuais, que não estão sob proteção da lei por serem o que são.
E, em seguida, em discurso na Câmara dos Deputados, tentando se remediar mais uma vez, declarou: “Eu quero crer que foi um erro meu...”. Ou o cara não bate bem da cachola ou é um frouxo mesmo. Nem ele acredita no que ele fala. Nem ele se suporta.
Aí veio “mais do mesmo” com gente nossa, de Araçatuba, o Michael do Vôlei Futuro. Humilhado e exposto nacionalmente no jogo em Belo Horizonte, contra o Cruzeiro de Minas. Coisa feia, mineirada. Logo vocês, povo reconhecido como recatado, como ordeiros, como “na de vocês”. Agora, eu é que quero crer que isso não é sentimento de todos que estavam ali, mas fruto de uma “emoção exagerada”, para buscar eufemismo comportado.
Mas o troco veio de casa, e no mais alto nível. Uniformes especiais contra a homofobia, torcida com adereços em rosa (lógico que uma metáfora) para protestar contra os arruaceiros mineiros. E, após um jogo apertado em que nosso Vôlei Futuro nem mostrou o seu máximo, a dupla vitória: de toda equipe com o placar do jogo e, principalmente, com o desempenho do Michael. É, aquele mesmo que foi achincalhado em Minas Gerais.
Minha gente, em pleno século XXI, continuar com essa baboseira de preconceito? Uma hora “porque” é negro, outra hora “porque” é gay, depois “porque” é nordestino, mais adiante “porque” é albino, um pouquinho mais “porque” é pobre... “porque”... “porque”... por quê? Porque o homem (alguns deles pelo menos) é egoísta e não suporta o diferente. Tudo que fere o padrão estabelecido pelos “deuses da verdade” apavora, atrapalha, macula.
É lógico que o caso do assassinato das crianças no Rio de Janeiro também me chocou muito. Quando tomei consciência do fato fiquei anestesiado, mas com dor. Dor em pensar nas circunstâncias em que o episódio aconteceu: numa escola, com crianças e adolescentes sem defesa, numa sala fechada, sem ao menos poderem reagir. Não bastasse o descaso a que a Educação está submetida neste país, ainda mais uma cena dessa ocorrendo na escola. É pra chocar mesmo.
Como não estão se sentindo as famílias dos mortos? Como não estão passando cada uma das crianças e adolescentes que vivenciaram essa grave tragédia? Que sentimento não estarão tendo professores, coordenadores e direção daquela escola? Medidas enérgicas precisam ser tomadas contra os que contribuíram para que esse infeliz episódio acontecesse: vendendo as armas e munição do crime, treinando o assassino, não denunciando o algoz à polícia.
Em cada um dos fatos citados antes, a violência como protagonista. Nos dois primeiros, travestida de intolerância, de preconceito, de egoísmo (e não se esqueçam os eleitores do tal Bolsonaro que ele os representa). No último uma violência mais direta, nua, crua, em sua mais elevada potência.

Antonio Luceni é mestre em Letras e escritor, Diretor da União Brasileira de Escritores – UBE.

domingo, 3 de abril de 2011

A guardiã de livros

Antonio Luceni
aluceni@hotmail.com

Como afirmou Cecília Meireles, “palavras, que estranha potência, a vossa”. E não é assim?
A partir de um artigo que escrevi na semana passada alcancei uma alma. (Terá sido eu ou foram as palavras?). Melhor dizendo, as palavras a alcançaram. Sim, porque não é qualquer um que tem o poder de tocar na alma da gente, não. Acabem-se logo as pretensões dos pretensiosos de plantão. Nossa alma é tocada por poucos. Definitivamente: as palavras a tocaram.
Mas já a vinham tocando há tempos... E por meio delas D. Dirce, a professora Dirce, tocou a muitos. Não disse sobre quem estava falando, não é mesmo? A alma tocada, aquela de umas linhas acima, era a de D. Dirce. “Fiquei sensibilizada a partir do que escreveu, por isso resolvi delegar-lhe essa função”. E que função! A de dar continuidade à sua missão com livros, que a acompanham há décadas.
Ela que fazia aniversário no dia da visita e eu que estava ganhando o presente. Coleções inteiras de Jorge Amado, Monteiro Lobato, Machado de Assis... obras com edições esgotadas, encadernações que já não mais são feitas pelas editoras, seja porque são caras (capas de couro, com detalhes em relevo e de edições raras) ou porque não se tem mais o cuidado que tinham  com os livros da antiga.
Só para citar uma dessas raridades, “Formação da Literatura Brasileira”, do Antonio Candido, quatro volumes, da Martins Fontes Editôra (com acento circunflexo no “o”, mesmo), de 1959. (Ele já existia 18 anos antes de eu nascer e nem sabia que depois de 50 anos iríamos nos encontrar!).
Cada livro que eu olhava, em cada coleção que eu mexia, os olhos de D. Dirce me seguiam. Como um fiel escudeiro, um verdadeiro guardião, ela não pestanejava e cada movimento era seguido e registrado como uma das mais eficientes e modernas câmeras.
“Fique tranquila, D. Dirce, eles ficarão em boas mãos”. Dizia isso na tentativa de tranquilizá-la um pouco. E emendava em seguida: “Sei o que a senhora está sentido, já que alimento o mesmo sentimento pelos meus livros”. Ela parecia conformar-se mais um pouco. (Mas que nada, quem fica ligado nessa coisa de livro nunca mais se desliga. É um vício bom, uma coisa meio louca, mas que faz bem pra gente).
Agora a responsabilidade é passada para mim. Boa parte do “tesouro” que ela vigiou e que, com maestria, distribuiu entre alunos, familiares e amigos, está sob meus cuidados. Tal qual a guardiã Dirce, preciso cuidar deles, fazer com que suas páginas não sejam esquecidas no tempo ou que se tornem comida para traças e cupins. É preciso abri-las, distribuí-las para aqueles que têm “fome”, que precisam de uma, duas, muitas palavras amigas. É preciso que esses livros corram de mão em mão, mexendo com a visão, coração e alma das pessoas (já disse que poucas coisas tocam a alma das pessoas? Sim, uma delas é a literatura).
Então que seja assim, D. Dirce. Prossigo com a missão da senhora no espalhar das letras pelos corações dos homens. Quem sabe não brotem delas grandes médicos, advogados, arquitetos, professores... pessoas mais humanas e felizes pelo simples fato de terem tido acesso aos livros?

Antonio Luceni é mestre em Letras e escritor, Diretor da União Brasileira de Escritores – UBE.


RESPOSTA DE DONA DIRCE À ESTE CRONISTA:



Luceni,

Fiquei deveras sensibilizada com suas palavras.
De fato, desfazer-se de “livros” não é tarefa fácil de se cumprir. Todavia, eu não me sentia intranquila à medida que os livros eram postos à parte. Foi um ato por demais consciente e eu o fiz com satisfação.
            Senti-me feliz, imensamente feliz por saber que o “herdeiro” desses volumes é pessoa idônea, dinâmica, capaz, que poderá transmitir a muitos jovens o seu cabedal de conhecimentos, difundindo-o entre os interessados em obter grandes e sábias conquistas através deles.
            Orientada por minha filha, que tem por você uma grande admiração, eu consegui, sabiamente, encontrar o “destinatário” certo para desempenhar essa missão.
            É raro encontrarmos pessoas interessadas em alimentar a alma ansiosa por enriquecer-se com conhecimentos variados.
            Atualmente, com descobertas tecnológicas avançadas, os jovens encontram maior interesse em jogos, “baladas”, internet e uma infinidade de games que os computadores oferecem a todo instante, do que na leitura de um livro.
            Com prazer, as “palavras” puderam tocar-me fundo, pensando no que disse o poeta Castro Alves no poema O livro e a América:
Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
É germe — que faz a palma,
É chuva — que faz o mar.”
Finalizando, quero aqui expressar meus agradecimentos pela gentileza de seus gestos no pouco tempo em que tive o prazer de conhecê-lo. Primeiramente, quando, ao vir me visitar, entregou-me aquelas rosas perfumadas e belas com um maravilhoso cartão que alegraram ainda mais o dia em que eu tinha o privilégio de completar oitenta e dois anos muito bem vividos Graças a Deus.
Num segundo momento, como mais uma surpresa encantadora, recebi o texto que você havia publicado em seu blog e também no jornal sobre esse nosso encontro.
Tais atos revelam nobreza e muita delicadeza que só as possuem pessoas privilegiadas e sensíveis como você.
E é por esse motivo que não marco a minha idade pelos anos que se passam, mas pelos amigos que consegui conquistar.
Obrigada, Luceni.

Dirce Jodas Gardel Tafner