segunda-feira, 14 de junho de 2010

A PRESENÇA DE SARAUS DE POESIA NA REDE MUNICIPAL DE ENSINO DE ARAÇATUBA COMO FORMA DE RESGATE DA ORALIDADE LITERÁRIA

Antonio Luceni dos Santos (SME/Araçatuba-SP)

RESUMO

É notória, nos últimos anos, a preocupação entre gestores e educadores em desenvolver um trabalho que trate o texto literário como algo importante e enriquecedor na formação das crianças, como de fato o é. Entretanto, na observação que temos feito da prática pedagógica de nossos colegas professores, o trabalho ainda é muito centrado na leitura e/ou na escuta de textos. A presença da oralidade é pouco explorada e, por vezes, relegada por várias questões, entre as quais porque a criança ainda “não sabe” ler direito, “não conhece” aspectos de entonação, expressividade etc... Contar histórias e declamar textos é algo tão antigo quanto a própria história da humanidade. Na Grécia antiga “era declamada por profissionais da palavra, narradores de feitos bélicos do passado...”, conforme mostra Regina Zilberman no livro Literatura e Pedagogia – ponto e contraponto, Global. Dar voz ao texto estético por meio das crianças e adolescentes é também contribuir para o engajamento destes no texto literário, é favorecer a multiplicidade de expressões e contribuir para que os vários “fôlegos”, por assim dizer – tal qual no mito bíblico do gênesis ou no “Nascimento de Vênus” de Botticelli – deem vida ao texto literário na escola, assim como acontece fora dela.

Palavras-chave: oralidade, escola, leitura, literatura infantil.


1 INTRODUÇÃO

A criança, mesmo antes de entrar na escola, faz uso de diferentes situações comunicativas, entre as quais, a oralidade. Sobretudo as crianças menores que ainda não passaram pelo processo de alfabetização têm no recurso oral o mais poderoso instrumento de comunicação.
Conforme afirma o Referencial de Ensino para a Educação Infantil (volume 3) “A linguagem oral está presente e na prática das instituições de educação infantil à medida que todos que dela participam: crianças e adultos, falam, se comunicam entre si, expressando sentimentos e ideias.” (REEI/MEC; 1998: 119). Ora, se há necessidade de haver interação entre os vários participantes desse processo comunicativo, colocar as crianças apenas como meros escutadores do processo de leitura é, por assim dizer, tirar-lhes a vez e a voz. Em contrapartida, oportunizar situações em que as crianças possam se expressar oralmente dizendo o que pensam a respeito deste ou daquele assunto, que tragam as experiências vividas dentro e fora da escola, que intercambiem entre si vivências sobre este ou aquele aspecto ou tema do seu cotidiano é favorecer-lhes o engajamento nas mais diferentes situações vividas.
Sobre esse diálogo com o texto, afirma Angela Kleiman: “o aluno poderá tornar-se ciente da necessidade de fazer da leitura uma atividade caracterizada pelo engajamento e uso do conhecimento, em vez de uma mera recepção passiva. Recipientes não compreendem.” (KLEIMAN; 1999: 26).
Conforme vemos, há que se manter uma relação direta e ativa com o texto (seja ele oral ou escrito) de forma que, a partir desse diálogo entre leitor-texto, haja o que nós chamamos de leitura.
Percebida a importância da presença da oralidade nos espaços por onde circulam a infância e pensando também num encaminhamento sobre as possíveis discussões e temas propostos para estimular a oralidade entre nossas crianças, propomos o texto estético/literário como elemento fomentador e desencadeador dessas discussões. Por quê? Para tentarmos uma resposta para esta pergunta fazemos uso do pensamento de Ronaldo Lima Lins, quando diz:
A diferença entre a literatura e qualquer outra atividade (porque não se pode dizer, de modo algum, ser ela a única forma de resistir à angústia da existência) é que, ao contrário das demais, que constituem respostas ou reflexos, como a ação, à necessidade de transformar o mundo, a literatura reflete a vida e reflete sobre a vida. Possui, por isso, uma vantagem sobre os demais recursos, na medida em que, por intermédio dela, torna-se possível acompanhar, ao longo do tempo, os diferentes níveis de angústia, numa confrontação que ora se acentua, ora se atenua, mas nunca desaparece na espinha dorsal de cada obra. (LINS; 1980: PP. 9 – 10).

Como vemos, tanto a presença da oralidade quanto a da literatura são elementos que, se não resolvem, contribuem em muito para formação intelectual, para ampliação de repertório e trânsito social, para o intercâmbio de ideias e pensamentos, para proposição do (re)olhar o mundo sempre como algo novo e, por isso mesmo, como uma novidade a ser apre(e)ndida.
Nos próximos tópicos discutiremos mais sobre a importância da presença da oralidade e da literatura como um dos desafios propostos ao professor de hoje no desenvolvimento da competência linguística dos alunos. E, também, relato de uma experiência prática de uma das escolas municipais da Rede Municipal de Ensino de Araçatuba com Saraus de Poesia e a presença da oralidade estética.

2 A ORALIDADE FORA DA ESCOLA

Uma das primeiras situações de uso da fala de qualquer pessoa é em seu contexto familiar. É comum a criança ainda na fase de aquisição da linguagem oral (re)conhecer tudo que está à sua volta por meio da nomeação do que lhe está ao entorno. Sendo assim, falar, desde cedo, significa relacionar-se de forma ativa com o mundo. Quando a criança, ainda bebê, descobre isso – pedir água, dizer que está com fome, solicitar passeio e tudo mais – passa a ser entendido como algo relacionado à sua própria condição de viver. Num processo paulatino essa comunicação vai sendo ampliada e cada vez mais elaborada, a fala passa a ser instrumento da relação entre a criança e sua família e os diferentes meios em que vive.
Conforme expresso no Parâmetro Curricular Nacional de Língua Portuguesa:
O domínio da língua tem estreita relação com a possibilidade de plena participação social, pois é por meio dela que o homem se comunica, tem acesso à informação, expressa e defende pontos de vista, partilha ou constrói visões de mundo, produz conhecimento. Assim, um projeto educativo comprometido com a democratização social e cultural atribui à escola a função e a responsabilidade de garantir a todos os seus alunos o acesso aos saberes linguísticos necessários para o exercício da cidadania, direito inalienável de todos. (PCN/MEC; 2001: 23).

Se entendemos como importantes as proposições descritas acima. Se entendemos como lícito não negar o direito e o acesso a tão importantes instrumentos sociais – fala e conhecimento literário, repertório de mundo. Se entendemos que formar e transformar fazem parte de nossa atuação como educadores, então devemos considerar imprescindíveis tais ações e acontecimentos também dentro da escola.

3 A ORALIDADE NO CONTEXTO ESCOLAR

Iniciaremos este tópico retomando o Referencial de Ensino para a Educação Infantil (volume 3), quando diz:

O trabalho com a linguagem oral, nas instituições de educação infantil, tem se restringido a algumas atividades, entre elas a rodas de conversa. Apesar de serem organizadas com a intenção de desenvolver a conversa, se caracterizam, em geral, por um monólogo com o professor, no qual as crianças são chamadas a responder em coro a uma única pergunta dirigida a todos, ou cada um por sua vez, em uma ação totalmente centrada no adulto. (REE/MEC; 1998: 119).

Mesmo passados mais de dez anos da publicação do documento citado acima, a realidade apresentada por ele quanto a participação e envolvimento das crianças nas atividades que relacionam a oralidade em nossas escolas brasileiras ainda é muito distante do que gostaríamos pensar como ideal.
No mesmo documento podemos ver apontadas diferentes contribuições trazidas pela presença da oralidade desde cedo no contexto escolar, entre as quais o fato de possibilitar a comunicação “de ideias, pensamentos e intenções de diversas naturezas, influenciar o outro e estabelecer relações interpessoais. (...) É por meio do diálogo que a comunicação acontece.” (REE/MEC; 1998: 120).
A escola constitui-se para criança num novo espaço de comunicação e inter-relação em que também a oralidade deverá ser revista para atender a esse novo contexto e a esses novos personagens. A promoção de atividades que mostrem a leitura para a manifestação do pensamento pela oralidade em poemas, contos, causos e outros... certamente contribuirão para que as metas e objetivos ressaltados anteriormente sejam efetivados.
Ciente da importância do papel da escola na contribuição desse falante e da efetiva e positiva comunicação como instrumento social, a Prefeitura Municipal de Araçatuba, por meio da Secretaria Municipal da Educação, dedicou em seu Projeto Político Pedagógico Instituicional – PPPI 2009 – 2012 parte de um capítulo denominado Considerações sobre a relevância da Literatura – as intenções de construção de uma “Cidade Leitora” e, entre as várias ações propostas para atingir a tal fim: presença de contadores de histórias nas escolas municipais; salas mágicas; saraus de poesia etc...

4 A ORALIDADE E O TEXTO ESTÉTICO/LITERÁRIO

No ano passado foi lançado na Festa Literária Internacional de Paraty – FLIP, no Rio de Janeiro, o Manifesto por um Brasil literário, documento este encabeçado pelo escritor Bartolomeu Campos de Queirós que trata sobre a importância da presença da literatura “em todos os espaços por onde circula a infância” (QUEIRÓS; 2009: p. 01). Um documento muito rico e que vale a pena ser lido. Entre as muitas questões e reflexões trazidas pelo seu propositor gostaríamos de destacar a seguinte referência:

Liberdade, espontaneidade, afetividade e fantasia são elementos que fundam a infância. Tais substâncias são também pertinentes à construção literária. Daí, a literatura ser próxima da criança. Possibilitar aos mais jovens acesso ao texto literário é garantir a presença de tais elementos – que inauguram a vida – como essenciais para o seu crescimento. Nesse sentido é indispensável a presença da literatura em todos os espaços por onde circula a infância. Todas as atividades que têm a literatura como objeto central serão promovidas para fazer do País uma sociedade leitora. O apoio de todos que assim compreendem a função literária, a proposição e indispensável. (QUEIRÓS; 2009: p. 01).

Como vemos, a ligação entre literatura e a criança é algo inevitável – ainda bem! Os pequenos têm interesse pela literatura, assim como os adultos, porque esta funciona como uma espécie de “divã” em que inquietações são acalmadas e outras geradas, angústias aplainadas e outras criadas, sonhos encontrados e outros desencantados, respostas e perguntas convivendo em harmonia, onde real e fantasia são dois lados da mesma moeda. Onde possível e impossível são primas-irmãs, onde a fantasia ganha forma – porque já de forma invisível e quieta convive com todos nós.
Possibilitar o encontro entre a criança e a literatura e fazê-la externar essa relação com o livro ou qualquer outro suporte também por meio da oralidade é possibilitar a pluralidade de vozes, de verdades, de propostas, de opções de vida, de viver...

5 RELATO DE EXPERIÊNCIA COM SARAUS DE POESIA DA ESCOLA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO BÁSICA (EMEB) ANA DOS SANTOS BARROS – ARAÇATUBA/SP

Existem na Rede Municipal de Ensino de Araçatuba diferentes ações que contribuem para a exploração da oralidade por parte de nossos crianças, entre as quais podemos citar o trabalho com coral infantil da EMEB Prof. José Machado Neto, o trabalho com teatro a partir de oficinas literárias com os alunos da EMEB Fausto Perri, o trabalho com contos de fadas com as crianças da EMEB Enoy Chaves da Costa Leone, todos eles já com alguns anos de ocorrência, só para mencionar algumas entre tantas outras ações que acontecem de forma recorrente e cotidiana, mas por vezes tímidas ou até mesmo anônimas.
Gostaríamos, entretanto, de relatar a experiência com Saraus de Poesia desenvolvida na EMEB Profª Anna dos Santos Barros desde o ano de 2003 por associar o texto estético/literário e o desenvolvimento da linguagem oral como forma de aproximar as crianças da literatura/poesia, democratizando, inclusive, a demonstração das várias oportunidades de comunicação (pessoal, coletiva, escrita, oral, gestual, visual etc.).
Segundo a coordenadora da escola, Edislene Zidioti Ferreira, o projeto nasceu da necessidade de propiciar às crianças o acesso ao texto literário e, por meio dele, estimular o gosto pela leitura e produção de textos. Pelo fato de muitas crianças, sobretudo as menores – já que o projeto envolve todas as séries existentes na escola (1ª a 4ª), mas também crianças na 3ª ou 4ª série com dificuldades para ler e escrever ou mesmo semiletradas, o trabalho com saraus possibilitou a essas crianças a valorização de si mesmas enquanto produtores de textos orais e serviu (e ainda serve, porque o projeto continua) para democratizar e inseri-las no contexto escolar que, antes do projeto, era meio marginalizado, isto é, deixava a criança que não tinha o domínio da escrita à margem do percurso educativo, passando a colocá-la também como sujeito, protagonista, como agente ativo e colaborador do grupo.
Nesses sete anos de existência do Sarau de Poesias o projeto sofreu diferentes alterações. O que inicialmente somente envolvia os alunos da escola num ou noutro momento do ano, passou a acontecer durante todo o ano, com diferentes momentos e oficinas de criação, com presença de poetas locais para palestras e workshops com as crianças e professores, com a intervenção e presença das famílias da comunidade em algumas etapas, com o intercâmbio entre salas e séries da própria escola e entre a referida EMEB e escolas particulares da cidade, na eleição de um poeta específico num determinado ano e proposta de antologia em outro e assim por diante.
Os resultados não poderiam ser melhores. O envolvimento das turmas com a palavra encantada, a brincadeira com ritmos e sonoridades, com temas diversos, o querer falar, o querer partilhar de experiências, de histórias de vida, a ampliação de repertório, a “publicação” de livros de poemas, a autovalorização e a descoberta de novas aptidões fazem parte dos testemunhos e verificações detectadas nos vários momentos e edições do projeto.
O trabalho se inscreve, portanto, como proposta de beneficiar o aluno. A criança percebendo-se inserida em um contexto de respeito e carinho, de valorização e de oportunidades, consegue desenvolver sua capacidade de pensar e agir de forma muito mais eficaz e constante. Até mesmo as mais tímidas conseguem se libertar do estigma da introspecção, muitas vezes criado dentro do seu núcleo familiar.
“Essas diferentes dimensões da linguagem não se excluem: não é possível dizer algo a alguém sem ter o que dizer. E ter o que dizer, por sua vez, só é possível a partir das representações construídas sobre o mundo” (PCN/MEC; 2001: 24), alerta-nos o documento. E quanta coisa interessante há para aprender no texto literário, na poesia. E quanta coisa interessante também há para se falar depois que lemos poesia. Quanta coisa importante podemos descobrir quando lemos poesia. Quantas reflexões importantes podemos propor ao declamarmos poesia...


6 CONCLUSÃO

Como pudemos observar ao longo deste artigo o trabalho com a linguagem oral é ao mesmo tempo urgente e importante e, talvez, na mesma proporção, infelizmente, distante no trabalho desenvolvido em nossas escolas.
De igual modo, a presença do texto literário – apesar de já, nas últimas décadas ter sido expandida nas escolas brasileiras por diferentes ações governamentais e técnicas, pela reformulação de grades curriculares nas graduações etc – ainda é algo tímido e por vezes mecânico, sem um trabalho que de fato dialogue com o texto literário de forma enriquecedora e propositora.
Pensar num trabalho que provoque o encontro entre a linguagem oral e a literatura/poesia é antes de tudo propiciar momentos para que a criança – ou qualquer outra pessoa – se reconheça como alguém capaz, como sujeito do mundo, participador e participante e não somente como expectador.
Concluímos este artigo com os versos de Ferreira Gullar. Entendemos que eles ilustram na prática alguns dos conceitos discutidos antes: “O poeta se aproxima da criança,/ que vê o mundo com olhos virgens e que,/ por quase nada saber, está aberta ao ministério/ das coisas. Para criança – como para o/ poeta – viver é uma incessante descoberta da vida”.

7 REFERÊNCIAS

ARAÇATUBA. PMA, Secretaria Municipal de Educação. Projeto político pedagógico institucional – PPPI. Araçatuba, 2009 - 2012. 153p.
BRASIL. MEC, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais (ensino fundamental). Língua Portuguesa. Brasília, 2001. 144p.
BRASIL. MEC, Secretaria de Educação Fundamental. Referencial curricular nacional para educação infantil: volume 3. Brasília, 1998. 270p.
GULLAR, Ferreira. O prazer de ler, in: MURRAY, Roseana (org.). Bailarina e outros poemas. v. 1. São Paulo: FTD, 2001.
KLEIMAN, Angela. Texto e leitor – aspectos cognitivos da leitura. 12. ed. São Paulo: Pontes, 2009.
LINS, Ronaldo Lima. A violência na literatura. Tempo Brasileiro, nº 58, 1980.
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Manifesto por um Brasil literário, in: www.brasilliterario.org.br, 2009.

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