terça-feira, 7 de maio de 2013

COLCHA RALA



Numa Terra quente, num lugar distante.
Os rodamoinhos varrem o solo enchendo as faces de poeira. Enchendo as casas de poeira. Enchendo as vidas de poeira.
Quando vem a chuva, poeira se une a ela e gera lama. Lama que enche a casa de barro. Que suja as roupas de barro. Que enche a vida de barro.
Sem chuva, o vento, o frio.
Antes mesmo que o sol traga a manhã, o vento invade a casa, por entre frestas de portas e janelas, por entre os vãos de telhas desencontradas, de múltiplas formas da olaria. Invade sem avisar ou pedir licença e acorda os que nela habitam, em seus leitos pobres com seus quase cobertores.
O menino se contorce mais um pouco, comprimindo-se tal qual feto em útero à espera de nascer. O frio é forte. A colcha é fraca. A noite é curta. O dia é longo.
Ainda sob a treva matinal sai o menino para o trabalho, com tantos outros meninos. Facão e bornal nas costas, marmita de ingredientes mínimos, os olhos ainda remelentos, a coragem somente esperança.
As roupas ralas não impedem de o vento frio cortar-lhe o corpo. Com a face anestesiada, procura perceber o nariz; a boca cortada, com fissuras ainda doendo, sangram esporadicamente na ausência de hidratação.
Uma roça de cana o espera. Ao longo do percurso fantasia uma vida melhor, com, ao menos, o que comer direito. Como lutador que é, alimenta a esperança de um dia poder dormir num quarto fechado, num cobertor que o cubra por completo, que o vento frio não o castigue tanto e o deixe dormir nas poucas horas de que dispõe para isso.
Enfileiradas, as touceiras de cana se apresentam como soldados infindos de uma batalha diária que precisa ser vencida. Um a um são derrubados. Um a um são mutilados, cortados, lançados para o lado; agressores inimigos.
Vez ou outra uma cascavel surge no meio do caminho e faz com que o menino desperte do sono que ainda o acomete. O frio, àquela altura quase finito, ainda o acompanha forte, sobretudo na mão pelada e dormente, que segura o facão.
A urgência é que o sol fique um pouco mais forte com a aproximação do almoço e o abrace, pondo fim ao martírio. O ovo frito, o arroz brilhante, o feijão ralo não são os protagonistas na parada para o descanso do meio dia. O corpo está aquecido, seus membros sentidos por inteiro. A blusa rala já até incomoda um pouco e não absorve todo suor que lhe envolve o corpo.
Pelo menos, o frio já foi.

Antonio Luceni é mestre em Letras, jornalista e escritor. Diretor de Integração Nacional da União Brasileira de Escritores – UBE e membro da Academia Araçatubense de Letras – AAL.

2 comentários:

  1. É MEU IRMÃO NINGUÉM MELHOR DO QUE VOCÊ PRA RELATAR ISSO COM TANTA RIQUEZA DE DETALHES..........QUE DEUS TE ABENÇOE SEMPRE ................LUCIVAN.

    ResponderExcluir
  2. Que bom que gostou, Lucivan... É a vida como ela é!

    ResponderExcluir