terça-feira, 10 de dezembro de 2013

PROCURE (RE)LER

*Jornalista e escritor
Lançada no mesmo ano em que um grupo de artistas abalou o Brasil com produções literárias, musicais, pictóricas, teatrais e poéticas para lá de “estranhas” e não usuais para o Brasil da época, a Klaxon (1922-1923), primeira revista modernista do país, até hoje se mostra atual.

Conforme afirma Mário da Silva Brito, numa introdução da revista, “em Klaxon aparece, sob forma de artigos, poemas, comentários, críticas de arte, piadas e farpas zombeteiras, o estado de espírito do grupo de jovens que elaborou a ideologia modernista”. E isso não é nenhum exagero; é só (re)ler os muitos de seus artigos, assinados por intelectuais como Mário de Andrade, Osvald de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Guilherme de Almeida, entre outros, além de poemas, crônicas e contos que não haverá contestação.

A Cosac Naify lançou uma edição comemorativa, com as 9 edições do mensário e mais um encarte com análises e comentários de seus organizadores; tudo acomodado numa caixa rústica, com a logomarca do periódico estampada nela. Não bastasse essa primeira boa impressão que temos do material logo à vista, muito (mais muito mais!) vale a (re)leitura de cada um de seus exemplares.

Dentre os muitos escritos, gostaria de destacar um trecho (sic) do Ars Longa..., do poeta Guilherme de Almeida. Atual, rico e poético/profético, como não poderia deixar de ser:

“A arte é anterior á vida. Isto é uma convicção minha, perfeitamente serena. Eu não tenho escripto os meus versos á margem da minha vida: eu tenho escripto a minha vida á margem dos meus versos. Minha existência é um plagio da minha arte.

A vida de todos os artistas tem sido um commentario á sua arte. Um commentario explicativo. E isso pela razão muito simples de que um grande, verdadeiro artista colloca a sua arte acima da sua vida. Elle não vive um caso para exploral-o depois: elle faz arte primeiro, arte que elle inconscientemente vae viver mais tarde. Si para um homem qualquer o simples contacto com uma obra de arte é uma tentação irrisistivel de imital-a na vida, o que não será para o seu próprio autor?

* * *

Assim, a arte é uma prophecia. Um lindo vaticinio. Realiza se ou não? — Só os artistas o sabem, mas bem intimamente.”

E continua sua reflexão, agora com questões bastante pertinentes em relação à polêmica das biografias não autorizadas, encabeçada por gente como Roberto Carlos, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico, Djavan e outros. Vejamos:

“Quando se affirma uma cousa qualquer é preciso concluir qualquer cousa. Do que affirmei concluo isto: estou absolutamente revoltado contra esse preconceito geral de que só a obra de um artista pertence ao publico; a sua vida, não.

Mentira. A sua vida pertence também ao povo. O povo tem o direito de devassal-a â vontade. Que nenhum artista grite contra isto! Eu pensaria que elle se envergonha da sua vida, isto é, do resultado da sua arte.”

Frente ao exposto, não há mais o que dizer. É preciso que agora eu me cale e que você, prezado leitor, tire um tempo para digerir com calma as palavras desse intelectual e poeta que ressoam desde 1º de outubro de 1922 e que, ainda hoje, são muito atuais. E pensar que foi a partir dessas questões que o pessoal do “Procure saber” também produziu sua própria arte. Fica a dica: “Procure (re)ler”.

ARTIGO NA ÍNTEGRA:

Ars Longa…

A arte é anterior á vida. Isto é uma convicção minha, perfeitamente serena. Eu não tenho escripto os meus versos á margem da minha vida: eu tenho escripto a minha vida á margem dos meus versos. Minha existência é um plagio da minha arte.

A vida de todos os artistas tem sido um commentario á sua arte. Um commentario explicativo. E isso pela razão muito simples de que um grande, verdadeiro artista colloca a sua arte acima da sua vida. Elle não vive um caso para exploral-o depois: elle faz arte primeiro, arte que elle inconscientemente vae viver mais tarde. Si para um homem qualquer o simples contacto com uma obra de arte é uma tentação irrisistivel de imital-a na vida, o que não será para o seu próprio autor?

* * *

Assim, a arte é uma prophecia. Um lindo vaticinio. Realiza se ou não? — Só os artistas o sabem, mas bem intimamente.

* * *

Quando se affirma uma cousa qualquer é preciso concluir qualquer cousa. Do que affirmei concluo isto: estou absolutamente revoltado contra esse preconceito geral de que só a obra de um artista pertence ao publico; a sua vida, não.

Mentira. A sua vida pertence também ao povo. O povo tem o direito de devassal-a â vontade. Que nenhum artista grite contra isto! Eu pensaria que elle se envergonha da sua vida, isto é, do resultado da sua arte.

Desde que um homem dá publicidade á sua arte, despe-se em publico de certos direitos. E’ o que se entende por “cahir no no domínio publico». Prostitue-se. Vende-se. A bôa gente que compra um livro, que compra um quadro, que compra uma estatua, compra também um pouco a alma do seu autor. Não é absolutamente negociável uma alma separada do corpo. A arte é a alma; a vida é o corpo. Um homem que paga uma mulher paga um só instante da sua alma, com direito, evidentemente, a todos os segredos do seu corpo.

E’ preciso não se ter vergonha do corpo, si não se teve vergonha da alma. Todos os corpos parecem-se com as almas.

Pudor? — Mas o pudor é a virtude dos imperfeitos.

* * *

Não ha nada de inconfessável a traz de uma grande arte.

* * *

Um artista é mais ou menos um Doutor Fausto. Vende a um gênio máo a sua alma, para ter perfeições moças para o seu corpo.

Questão de conforto: uma obra de arte vendida produz geralmente uma chevióte bem cortada num corpo tractado, um cigarro agradável num pedaço de âmbar fino e um perfume de grande estylo num Unho puro.

Isto parece querer insinuar que o publico é uma espécie de Mefistófeles. Eis um elogio extraordinário que elle nunca teve.

* * *

Que bem pouca importância tem para o artista a obra de arte concluída! E’ por isso mesmo que elle a vende.

O artista é artista apenas emquanto crêa: tira do nada, è igual a Deus. Para elle, a obra de arte tem um valor ephemero, que vae do momento da concepção ao momento da conclusão. Depois… ella fica sendo uma pobre cousa desgraçada, bem morta e bem imprestável, na sua vida. Só representa uma utilidade toda sentimental: a de recordar aquelle instante divino e feliz da procreação.

* * *

Todo artista dá sempre á luz um filho morto. E entrega-o bem simplesmente á terra deste mundo.

Elle precisa chorar sósinho, maternalmente. Elle dispensa as consolações impossíveis das comadres serviçaes da visinhança, que vêm clamar assim:

— «O menino é táo lindo! Elle poderia ser um bailarino russo!»

— «O menino é tão feio! Elle poderia ficar corcunda!»

Não. Elle não é nem poderia ser: elle foi, Eis tudo.

Ah! os críticos!

Guilherme de Almeida

Neste domingo, 1.° de Outubro, 1922.

A Brasiliana USP digitalizou a revista Klaxon: mensário de arte moderna (1922-1923). O texto acima foi retirado da 6ª edição fac-símile da  revista. O site Monoskop fez uma postagem contendo as 09 edições da revista para download ou visualização do PDF. Preservamos a grafia original da edição fac-símile nessa postagem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário